O eclipse do dólar e a constelação financeira que a China está desenhando
Ofensiva chinesa não se restringe aos ativos financeiros. Sua diplomacia econômica amplia a influência em nações da Ásia, África e América Latina
Como um maestro que abandona uma sinfonia desafinada para compor sua própria obra-prima, a China começa a retirar seus instrumentos do concerto econômico liderado pelos Estados Unidos. O dólar, outrora nota dominante, pode estar prestes a perder seu como.
A sinfonia da desdolarização - Em 2024, a China reduziu sua exposição aos títulos do Tesouro dos EUA, encerrando o ano com US$ 759 bilhões em ativos, o menor nível desde 2009, segundo dados do Departamento do Tesouro dos EUA. Paralelamente, o país aumentou suas reservas de ouro para 2.290 toneladas, conforme relatório do World Gold Council. Esses movimentos indicam uma estratégia clara de desdolarização, intensificada após as recentes tensões comerciais entre as duas potências.
A ofensiva chinesa não se restringe aos ativos financeiros. Sua diplomacia econômica amplia a influência em nações da Ásia, África e América Latina por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota. O yuan a a ser usado em transações bilaterais com Rússia, Irã, Brasil e Arábia Saudita, sinalizando uma erosão lenta — mas firme — da hegemonia monetária americana.
Como o dólar se tornou o maestro da economia mundial - A atual ordem financeira global nasceu dos escombros da Segunda Guerra Mundial, com os Acordos de Bretton Woods, em 1944. O dólar foi estabelecido como moeda central, lastreado em ouro, e as instituições criadas nesse pacto — FMI e Banco Mundial — consolidaram o papel dos EUA como epicentro financeiro global.
Em 1971, Richard Nixon abandonou o padrão-ouro, transformando o dólar em moeda fiduciária. Mesmo assim, sua centralidade permaneceu, especialmente após o acordo com a Arábia Saudita para que o petróleo fosse comercializado exclusivamente em dólares. Hoje, ainda cerca de 58% das reservas internacionais são denominadas em dólar, uma queda significativa em relação aos 71% registrados em 1999, conforme dados do FMI.
A constelação BRICS ganha brilho - Em janeiro de 2025, o BRICS ou a contar com seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. A nova formação representa cerca de 36% do PIB global e 46% da população mundial, conforme relatório da UNCTAD. O grupo discute, com seriedade crescente, a criação de uma moeda comum e um sistema de pagamentos alternativo ao SWIFT, apoiado por blockchain.
A força do BRICS já não é potencial: é real, articulada e crescente. Seus países-membros compartilham uma visão crítica da ordem estabelecida e buscam uma nova arquitetura financeira mais justa e multipolar.
A nova rota da seda: o século XXI em construção - Anunciada por Xi Jinping em 2013, a Iniciativa do Cinturão e Rota (ou Nova Rota da Seda) é um dos projetos mais ambiciosos da história recente. Inspirada nas antigas rotas comerciais que ligavam China, Ásia Central, Europa e África, essa iniciativa busca criar um gigantesco corredor econômico global — marítimo e terrestre — que interliga mais de 70 países por meio de obras de infraestrutura, como estradas, ferrovias, portos e oleodutos.
Com investimentos superiores a US$ 1 trilhão, a Rota já financiou obras como a ferrovia China-Laos, o porto de Gwadar no Paquistão, e infraestrutura ferroviária em países africanos como Quênia e Nigéria. Mais do que um projeto econômico, trata-se de uma iniciativa geopolítica de longo prazo, que reposiciona a China como centro nervoso do novo comércio mundial — demonstrando uma qualidade estratégica essencial do pensamento chinês: planejamento em ciclos históricos, e não apenas eleitorais.
Estados Unidos: os ecos de uma queda anunciada - A venda de ativos chineses causou turbulência nos mercados americanos. Em outubro de 2024, o Nasdaq despencou 5,7% e os juros dos títulos de 10 anos atingiram 4,9%, segundo a Bloomberg. Com a dívida pública dos EUA ultraando US$ 34 trilhões, o custo de financiamento da máquina estatal cresce. O FMI alertou em relatório de março que o atual modelo fiscal americano é “insustentável no médio prazo”.
De 71% das reservas globais em 1999, o dólar caiu para 58,4% em 2023, e continua em declínio. Enquanto isso, o yuan vem crescendo em contratos bilaterais e como moeda de troca em acordos energéticos.
Antes de Donald Trump reassumir a presidência em 21 de janeiro de 2025, a disputa sino-americana era intensa, mas estável. Desde então, tarifas sobre semicondutores, bloqueios a empresas chinesas de energia e pressão sobre países que aceitam o yuan marcaram os 100 primeiros dias de seu governo.
A China respondeu com pragmatismo e velocidade. Em abril, consolidou novos acordos com os países do BRICS e firmou contratos com nações africanas e latino-americanas. Segundo o China Daily, 22% do comércio sino-árabe já é realizado em yuan.
O Brasil no tabuleiro global - Em meio a esse reposicionamento de forças, o Brasil emerge como ator diplomático e comercial relevante. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está, neste exato momento, 12 de maio, em visitas oficiais à Rússia e à China, ampliando a cooperação Sul-Sul e buscando alternativas à dependência dos mercados tradicionais ocidentais. Esta é a 3a. visita de Lula a Xi Jin Ping
Em Pequim, mais de 700 líderes empresariais brasileiros e chineses participam de rodadas de negociações. Embora os novos acordos ainda não tenham sido oficialmente anunciados, fontes do Itamaraty indicam que poderão envolver mais de US$ 25 bilhões em investimentos conjuntos.
China anuncia R$ 27 bilhões em investimentos no Brasil durante visita de Lula a Pequim - Durante visita oficial à China, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou nesta segunda-feira (12/05) a previsão de R$ 27 bilhões em investimentos chineses no Brasil. A declaração foi feita após um fórum empresarial promovido em Pequim pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações (ApexBrasil), cujo presidente, Jorge Viana, detalhou os aportes previstos. Entre os investimentos mais expressivos estão R$ 6 bilhões da montadora Great Wall Motors (GWM) para expansão de suas operações no país, R$ 5 bilhões da plataforma de delivery Meituan (com o app Keeta), e até R$ 5 bilhões da Envision, que construirá o primeiro parque industrial “net-zero” da América Latina.
O pacote inclui ainda R$ 3 bilhões da estatal CGN para um hub de energia renovável no Piauí, R$ 3,2 bilhões da rede de sorvetes Mixue, com expectativa de gerar 25 mil empregos até 2030, e R$ 2,4 bilhões do grupo minerador Baiyin Nonferrous para adquirir a mina de cobre Serrote, em Alagoas. Estão previstas também ações de empresas como DiDi, Longsys (semicondutores) e laboratórios farmacêuticos, além de acordos para promover café, cinema e produtos brasileiros no varejo chinês. A visita de Lula, acompanhado por 11 ministros, o presidente do Senado Davi Alcolumbre e 200 empresários, reforça o papel da China como principal parceira comercial do Brasil.
Antes de chegar à China, Lula ou pela Rússia e se encontrou com Vladimir Putin, defendendo um cessar-fogo na Ucrânia. Segundo o presidente, a China saltou da 14ª para a 5ª posição no ranking de investimento direto no Brasil na última década, somando hoje mais de US$ 54 bilhões em ativos. Em seu discurso, Lula afirmou que a China está sendo exemplo de cooperação com países esquecidos pela economia mundial nas últimas três décadas. Um encontro com o presidente Xi Jinping está marcado para esta terça-feira (13).
Num gesto simbólico e inédito de cordialidade diplomática e reconhecimento cultural, o governo chinês saudou a visita de Lula com a estreia simultânea, em nada menos que 10.000 salas de cinema em todo o país, do filme brasileiro Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025. Protagonizado por Fernanda Torres e Selton Mello, o longa-metragem conta a trágica história do desaparecimento e morte do ex-deputado federal Rubens Paiva durante a ditadura militar brasileira. Produzido fora da China, o filme recebeu um tratamento raríssimo para padrões chineses — tamanha distribuição interna de uma produção estrangeira costuma ser reservada a grandes blockbusters norte-americanos ou a coproduções com estúdios locais. A calorosa recepção da obra nas telas chinesas tornou-se símbolo das atuais boas relações entre Pequim e Brasília.
Segundo o Banco Mundial, a China já é o principal parceiro comercial do Brasil, com trocas que superaram US$ 150 bilhões em 2024. Trata-se de um efeito dominó: no lugar da velha globalização multilateral, vê-se agora uma cadeia de reações em que o protecionismo e o unilateralismo empurram países emergentes para novas coalizões. O Brasil tenta transformar o risco da fragmentação em oportunidade de reinserção global.
Previsões realistas para um mundo em transição - O cenário global em abril de 2025 é de grande instabilidade. A inflação nos EUA diminuiu para 2,4% em março, a mais baixa desde setembro, caindo de 2,8% em fevereiro. Já a China enfrenta deflação, com os preços ao consumidor caindo 0,1% em relação ao ano anterior em abril, mantendo o mesmo ritmo pelo segundo mês consecutivo.
Especialistas da The Economist Intelligence Unit apontam para a tendência de “multipolarização” econômica, com o BRICS consolidando-se como alternativa sistêmica.
A moeda digital chinesa (e-CNY), já em uso experimental em grandes cidades, começa a ser testada em transações internacionais. Países como Tailândia e Emirados Árabes já iniciaram projetos-piloto. Ao mesmo tempo, contratos em moedas locais entre países do Sul Global mostram que o movimento de desdolarização é tão prático quanto simbólico.
Vivemos hoje dois grandes movimentos planetários simultâneos. O primeiro é o da desintegração: do multilateralismo, da estabilidade institucional e da ideia de uma ordem econômica única. O aumento das tensões geopolíticas, a fragilidade das democracias liberais e a concentração de renda — com 1% da população mundial controlando mais da metade da riqueza global, segundo a Oxfam — são sintomas evidentes.
O segundo movimento é o da integração: novas alianças econômicas, blocos regionais em ascensão, moedas alternativas e parcerias entre países que compartilham visões de futuro mais equitativas e colaborativas. Entendo estarmos diante de uma metamorfose sistêmica.
Esses dois movimentos sempre ocorreram ao longo da História. Não nos deveria causar nem surpresa menos ainda perplexidade. Para que o novo nasça é necessário que o velho morra. A ordem mundial que temos mostra-se lamentavelmente defeituosa porque travou abismos não apenas intoleráveis, mas ináveis: a imensa disparidade entre riqueza e pobreza, a cultura da exclusão, da discriminação por questões éticas, raciais, religiosas, sociais e nacionais. Tinha tudo pra ser fadada ao fracasso. A diferença é que somos a geração que testemunha isso enquanto esses eventos no ado nos foram apresentados através de livros históricos, da ciência política, da sociologia. No caso atual, podemos ouvir os gritos agônicos do que luta por nascer e os estertores do que insiste em sobreviver.
A justiça só será estabelecida se for varrida da história a injustiça. O fanatismo e a perseguição religiosa precisam desaparecer para que floresça o diálogo inter-religioso. A cultura patriarcal machista precisa perder espaço muito velozmente para que a igualdade de direitos entre homens e mulheres se firme como a divisa para uma nova ordem mundial equânime. E por aí vai.
Estaremos testemunhando o fim de uma ordem decadente e claramente defeituosa ou o nascimento de uma civilização planetária mais justa, solidária e interdependente?
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