China costura novo triângulo de poder com ASEAN e países do Golfo para redesenhar a ordem global
Cúpula histórica em Kuala Lumpur marca aliança entre China, sudeste asiático e mundo árabe, com foco econômico e crítica ao modelo ocidental
247 - Uma articulação diplomática inédita, com potencial de redesenhar o equilíbrio geopolítico da Ásia e do Oriente Médio, ganhou forma na última semana de maio, com a realização da primeira cúpula trilateral entre China, Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e o Conselho de Cooperação do Golfo (GCC). A reportagem é do portal RT.
A reunião ocorreu em Kuala Lumpur, capital da Malásia, país que ocupa atualmente a presidência rotativa da ASEAN e cujo primeiro-ministro, Anwar Ibrahim, tem sido um defensor ativo da integração regional e de novas parcerias globais.
Embora a aproximação entre esses blocos já estivesse em curso há anos, a formalização de um mecanismo trilateral de cooperação representa uma novidade estratégica. O encontro acontece num momento em que a Ásia é cada vez mais disputada por grandes potências. Em abril, o presidente chinês Xi Jinping esteve em missão diplomática por Camboja, Malásia e Vietnã, reforçando o peso de Pequim no sudeste asiático.
Quase simultaneamente, um emissário do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — que assumiu seu segundo mandato em 2025 — percorreu Camboja e Vietnã, buscando reverter o desgaste causado pelas tarifas norte-americanas e reafirmar o discurso de uma “região Indo-Pacífico livre e aberta”.
Paralelamente, Trump visitou três países do Golfo, firmando novos acordos e atacando a política tradicional dos EUA de intervenção na região. O presidente da França, Emmanuel Macron, também se inseriu na disputa, visitando Indonésia, Singapura e Vietnã para demonstrar que a União Europeia ainda é um ator relevante e capaz de oferecer alternativas a Washington e Pequim.
A escolha da Malásia como sede da cúpula não foi aleatória. Antes do evento, os países da ASEAN aprovaram em Kuala Lumpur o plano “ASEAN 2045”, uma visão estratégica de longo prazo que busca posicionar o sudeste asiático como um polo de crescimento global. A aproximação com China e GCC — que inclui Bahrein, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos — faz parte desse esforço. Juntos, os três blocos representam cerca de um quarto da população mundial e contribuem com proporção semelhante ao PIB global.
Comércio e energia formam a espinha dorsal da aliança. A China é hoje o principal parceiro comercial tanto da ASEAN quanto do GCC, sendo que mais de um terço do petróleo consumido por Pequim vem dos países do Golfo. O sudeste asiático, por sua vez, já superou a União Europeia como maior parceiro econômico da China.
A proposta chinesa de ampliar a atual Área de Livre Comércio China-ASEAN para incluir o GCC foi recebida com entusiasmo e pode acelerar a integração ao Acordo de Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP), maior zona de livre comércio do planeta.
Durante o encontro, o premiê chinês Li Qiang defendeu o que chamou de “grande triângulo” de prosperidade e segurança globais, com base em valores asiáticos como abertura, cooperação e integração. Anwar Ibrahim, por sua vez, propôs um diálogo entre civilizações confucianas e islâmicas, alinhando-se à Iniciativa de Civilização Global promovida por Pequim.
A aposta em “valores asiáticos” tem sido central na narrativa externa da China, em contraste com o modelo ocidental centrado em normas e intervenções. Em abril, Xi Jinping promoveu uma rara conferência de alto nível sobre as relações com a “vizinhança próxima”, reforçando a prioridade dada aos países ao redor da China no seu projeto de segurança e desenvolvimento.
Mesmo assim, o novo eixo enfrenta desafios importantes. As tensões no Mar do Sul da China, envolvendo disputas territoriais com Brunei, Malásia, Filipinas e Vietnã, continuam sendo um ponto de atrito entre Pequim e seus vizinhos do sudeste asiático. Além disso, há receios de dependência econômica, armadilhas da dívida e influência política chinesa. Tais preocupações levaram líderes como o presidente filipino Ferdinand Marcos Jr. a se reaproximar dos EUA.
No Oriente Médio, a disputa sino-americana também gera dilemas. Países historicamente alinhados com Washington, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, tentam equilibrar interesses econômicos com a China e pressões estratégicas dos EUA — especialmente em áreas sensíveis como inteligência artificial e tecnologia 5G. O governo Trump se opõe à adoção desses sistemas chineses e já suspendeu acordos militares com Abu Dhabi em retaliação. A discussão sobre a realização de parte do comércio de petróleo em yuan também provocou reações negativas por parte do Ocidente.
Apesar dos entraves, a nova aliança trilateral se destaca como uma resposta pragmática ao mundo multipolar em formação, onde a cooperação Sul-Sul ganha fôlego. A estratégia não implica, necessariamente, uma substituição do hegemon norte-americano por um chinês, mas sim a tentativa dos países do Golfo e do sudeste asiático de diversificarem suas parcerias e reduzirem vulnerabilidades.
A ofensiva tarifária promovida por Trump em seu primeiro mandato serviu de alerta para vários desses países, demonstrando os riscos da dependência dos EUA. Ainda assim, os sinais atuais indicam que a pressão de Washington para que governos regionais cortem laços com Pequim tem perdido eficácia.
Resta saber se a ASEAN será capaz de se equilibrar entre as potências, atuando como um polo autônomo no sistema global; se os países envolvidos evitarão a formação de blocos militares na Ásia-Pacífico; e se o formato trilateral resistirá às crescentes tensões geopolíticas. São perguntas em aberto — e as respostas virão com o tempo.
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