Desnaturalizar a prisão como foi feito com a desigualdade
Trecho da Introdução ao livro Diálogos Antipunitivistas (São Paulo: Editora Alameda, 2025), de Marco Mondaini
Por Marco Mondaini - O senso comum punitivista que se encontra por trás da ideia de que, a fim de que seja solucionado o problema da superlotação das prisões, faz-se preciso construir mais celas, alimenta-se de uma visão naturalizada dessa instituição responsável pela imposição de sofrimento aos despossuídos, desde o alvorecer do modo de produção capitalista.
Assim sendo, o esforço de combate e desconstrução do senso comum punitivista a necessariamente pelo trabalho intelectual crítico de historicização do processo de edificação do seu eixo fundamental de sustentação – a prisão.
Um esforço necessário, ainda que não suficiente, para levar a cabo a utopia abolicionista penal, mas que requer o engajamento de todos aqueles que se situam nas proximidades daquele campo intelectual definido, no ano de 1937, pelo filósofo alemão Max Horkheimer, como “teoria crítica”: uma teoria cujo “sentido não deve ser buscado na reprodução da sociedade atual, mas na sua transformação”.
Uma teoria cuja meta (“a realização do estado racional”) “tem suas raízes na miséria do presente”, a qual, porém, “não oferece a imagem da sua superação” no seu modo de ser aparente, o que faz com que “a teoria que projeta essa imagem não trabalhe a serviço da realidade existente – ela exprime apenas o seu segredo”.
Não faltaríamos com a verdade ao afirmar que o impulso de revelação do “segredo da miséria do presente” contido na “teoria crítica” tem a sua certidão de nascimento no longínquo ano de 1754, quando, em função do concurso literário
proposto pela Academia de Dijon com a pergunta “qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural?”, o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau redigiu um clássico fundador do pensamento igualitarista na modernidade ocidental: o Discurso sobre a origem e o os fundamentos da desigualdade entre os homens.
A pergunta elaborada pela Academia de Dijon e a resposta contida no Discurso rousseauniano assinalaram uma transformação radical na forma de se observar a sociedade do Antigo Regime, à medida em que a visão de mundo responsável pela naturalização da desigualdade entre os seres humanos sofreu um abalo que abriria espaço para a compreensão dos processos históricos que estiveram presentes na sua gênese e desenvolvimento, ou seja, a historicização sem a qual a crítica à desigualdade social não teria ganhado vida e impulsionado jacobinos e socialistas dos mais variados matizes a lutar por uma sociedade igualitária, desde a Revolução sa de 1789.
Ao buscar a origem da desigualdade entre os homens na propriedade privada, Rousseau indicava a impossibilidade de se continuar a pensar as questões sociais como fenômenos eternos, naturais ou religiosos, e, ao romper com tal forma de pensar a realidade, lançava as sementes para a compreensão
dos fatos sociais como processos históricos, ou seja, que não existiram no ado, tiveram a sua formação/consolidação no presente e podem desaparecer no futuro devido à conjunção entre as suas contradições internas e a ação transformadora dos seres humanos.
Nas palavras de Rousseau:
A religião nos ordena a crer que, tendo o próprio Deus tirado os homens do estado de natureza logo depois da criação, são eles desiguais porque assim o desejou; ela não nos proíbe, no entanto, de formar conjecturas extraídas unicamente da natureza do homem e dos seres que o circundam, acerca do que se teria transformado o gênero humano se fora abandonado a si mesmo.
“Abandonado a si mesmo”, um determinado segmento do gênero humano acabou por criar a prisão e transformá-la no principal instrumento de punição da mesma modernidade ocidental iluminada pela obra revolucionária de Rousseau,
como que a atestar a veracidade contida na afirmação de Michel Foucault, no seu Vigiar e punir: As ‘Luzes’ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas.
E, não por coincidência, a seminal revelação do “segredo” histórico da prisão viria à tona por intermédio da obra redigida, entre os tormentosos anos da década de 1930, por dois pesquisadores do Instituto Internacional de Pesquisas Sociais dirigido pelo acima citado Max Horkheimer, em meio à sua migração forçada da Alemanha aos Estados Unidos: Punição e estrutura social, de Georg Rusche e Otto Kirchheimer.
Responsável pela idealização e redação da parte substancial do primeiro manuscrito do livro, Georg Rusche levou a cabo a tarefa de demonstrar a existência da “interrelação entre punição e o mercado de trabalho” – hipótese proposta pelo Instituto, quando este ainda se encontrava situado na cidade de Frankfurt.
Escrita a posteriori por Otto Kirchheimer, a introdução da obra desvela o “segredo” histórico da prisão ao afirmar que “a pena como tal não existe; existem somente sistemas de punição concretos e práticas penais específicas”, ou seja, a pena não pode ser compreendida fora de um determinado contexto histórico, de uma precisa particularidade histórica.
Assim, ao contrário da forma de pensar dos penalistas liberais, situados no campo da teoria tradicional, defensores da tese de que “o propósito da pena é a proteção da sociedade”, a teoria crítica de Rusche e Kirchheimer advogava a tese de que:
[...] Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção.
É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo por forças econômicas e, consequentemente, fiscais.
Estando, pois, os variados sistemas de punição vinculados aos diversos períodos de desenvolvimento econômico e suas correspondentes estruturas sociais, chegou-se à conclusão de que, após as práticas penais medievais de indenização e fiança, castigos corporais e penas capitais, em torno do século XVII, concomitantemente à transição do feudalismo ao capitalismo, o aprisionamento tornou-se a principal modalidade de punição de trabalhadores pobres que precisavam ser submetidos à nova condição de classe trabalhadora industrial, obrigada a colocar a sua força de trabalho à disposição da emergente classe social dominante constituída pela burguesia industrial – isso, por intermédio da imposição de mecanismos de disciplinarização dos seus corpos e mentes.
Dito de uma maneira menos imprecisa, nas situações em que os cultos do protestantismo calvinista não foram suficientemente capazes de persuadir os trabalhadores pobres sobre a necessidade da aceitação iva do trabalho fabril, recorreu-se amplamente a medidas mais radicalmente drásticas, a exemplo das “casas de correção” – uma combinação entre as poorhouses (casas de assistências aos pobres) e as workhouses (oficinas de trabalho), “onde os mais resistentes eram forçados a forjar seu cotidiano de acordo com as necessidades da indústria”, que se afirmou como a protoforma do que viria a se constituir como o sistema prisional em todas as partes do mundo, à medida em que o modo de produção capitalista se universalizava.
Seguindo as trilhas abertas pelos frankfurtianos Georg Rusche e Otto Kirchheimer (e, também, pelo pós-estruturalista Michel Foucault), os professores italianos Dario Melossi e Massimo Pavarini dariam continuidade à mais que fundamental caminhada do estabelecimento de “uma conexão entre o surgimento do modo de produção capitalista e a origem da instituição carcerária moderna”.
Isso, fazendo duas advertências que, ados quase cinquenta anos da sua publicação em língua italiana, continuam atuais, ainda que apenas parcialmente.
Em primeiro lugar, o fato necessário para os propósitos da argumentação aqui desenvolvida de que “num sistema de produção pré-capitalista, o cárcere como pena não existe”.
Em segundo lugar (e aqui se localiza a limitação parcial, de caráter histórico, das advertências realizadas no livro publicado originalmente no ano de 1977), a afirmação de que estaria em curso a “desagregação da estrutura carcerária” – uma afirmação que cairia por terra em virtude do início do processo de encarceramento em massa, nos anos 1980, a partir dos Estados Unidos da América, mas que não invalidou a correta análise de que o capitalismo contemporâneo havia colocado em prática uma nova estrutura de controle da classe trabalhadora:
[...] Os indivíduos não são mais encarcerados, eles continuam lá onde normalmente estão reclusos: fora da fábrica, no território. A estrutura da propaganda e dos mass media, uma nova e mais eficiente rede policial e de assistência social são os portadores do controle social neocapitalista. Deve-se controlar a cidade, a área urbana, este é o motivo de fundo que fez nascer, nos anos 1920, a moderna sociologia dos ‘desvios’ no melting pot americano.
Coube àquele que talvez seja o mais destacado discípulo do sociólogo francês Pierre Bourdieu a iniciativa intelectual de iluminar a inversão mundial da tendência de diminuição da população prisional iniciada no último quarto do século XX.
Em Punir os pobres, Loïc Wacquant descortinou o processo levado a cabo a partir dos EUA de agem da “gestão social da miséria” para a “gestão penal da miséria” – processo este que se generalizaria pelos países do Norte global ainda no século XX, chegando até as nações dependentes do Sul global, na virada do século XX ao século XXI.
No mesmo contexto histórico em que estavam sendo publicadas duas das obras que viriam a influenciar decisivamente a construção da criminologia crítica (Vigiar e punir, de Foucault, em 1975; Cárcere e fábrica, de Melossi e Pavarini, em 1977), forjava-se uma inflexão na forma pela qual o Estado capitalista vinha mantendo de pé as contradições existentes dentro de uma sociedade de classes compromissada com os direitos de cidadania, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a saber: ao invés de uma engenharia política apoiada na extensão dos direitos sociais e na ampliação das políticas públicas de enfrentamento à pobreza (o Estado de bem-estar social), uma outra assentada nas fórmulas econômicas neoliberais de retração dos investimentos em políticas sociais e de expansão das privatizações, junto ao robustecimento do braço punitivo do aparelho estatal (o Estado penal-neoliberal).
Resultado direto de tal inflexão gestada nos EUA – que se mantém hegemônica até os dias atuais –, o mundo aria a conviver com uma realidade caracterizada pela elevação desenfreada dos índices de empobrecimento e desigualdade social, bem como das taxas de encarceramento incidentes particularmente sobre uma “população sobrante” capturada em grande medida pela retrógrada política de “guerra às drogas” e constituída basicamente por homens, jovens, negros, imigrantes nos países do Norte global, de baixíssimas renda e escolaridade, residentes em favelas e territórios periféricos em geral.
Nas palavras de Loïc Wacquant, ao comentar a realidade prisional daquele que acabou por se tornar o país com a maior população carcerária do planeta:
O que mudou durante este período não foi a natureza e a frequência da atividade criminosa, mas sim a atitude dos poderes públicos – e da classe média branca que constitui o grosso dos contingentes eleitorais – para com o proletariado e o subproletariado negro, escolhidos para se constituírem no principal alvo e junto aos quais o Estado penal se encarrega de reafirmar os imperativos cívicos do trabalho e da moralidade com tão mais vigor, que a precarização do emprego e a contração da caridade do Estado os colocam cada vez mais vulneráveis. Reforçada pelo viés de classe e de casta do sistema policial e judiciário, a austeridade penal visa e atinge as categorias mais afetadas pela austeridade econômica e social que se instaurou em reação à ‘estagflação’ dos anos 1970. Vale dizer que o aprisionamento de massa nos Estados Unidos não diz respeito tanto às ‘classes perigosas’ quanto às classes precárias em seu conjunto.
Reencontrando a missão que era sua em suas origens históricas, a instituição carcerária serve, doravante, como principal instrumento de gestão da miséria na América.
É chegado o momento de encerrar a presente defesa da importância da desnaturalização da prisão, aqui compreendida enquanto condição fundamental para o seu enfrentamento político, mas não há como fazê-lo sem recorrer à filósofa estadunidense Angela Davis, que, do alto da sua capacidade reflexiva crítica, da sua experiência de dezoito meses como prisioneira e da sua militância abolicionista penal, sinalizou a existência do gigantesco obstáculo existente para a luta antiprisional no fato de se encarar a prisão “como um aspecto inevitável e permanente de nossa vida social”, a qual, por ser “natural”, “é extremamente difícil imaginar a vida sem ela”.
De forma semelhante ao que ocorreu com as lutas contra a desigualdade social levadas a cabo desde os séculos XVIII e XIX, inspiradas nas ideias de Rousseau, Marx e tantos outros pensadores democráticos e socialistas críticos da existência da propriedade privada, as lutas dos que defendem o fim das prisões esbarra num sólido imaginário social que, por desconhecer a historicidade da prisão como forma de punição produzida e reproduzida pelo modo de produção capitalista, acaba por caracteriza-las como descoladas completamente da realidade, utópicas no sentido pejorativo do termo, isto é, lutas assentadas em ideias irrealizáveis.
Não restam dúvidas de que o caminho das lutas antipunitivistas, em geral, e das lutas anticarcerárias, em particular, situam-se num espaço de enorme aspereza, mas, ao fim e ao cabo, a própria história, ainda que seja bastante áspera, sempre nos apresenta brechas (maiores ou menores) a serem aproveitadas num sentido disruptivo.
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