Boaventura de Sousa Santos detalha demissão do CES após "processo longo e doloroso"
Sociólogo português denuncia erros processuais, perseguição interna e ataque político após acusações "gravíssimas e totalmente falsas" de assédio
247 - O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos detalhou sua demissão do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em 26 de novembro de 2024. Fundador da instituição em 1978 e seu diretor durante quatro décadas, Boaventura tornou pública a decisão por meio de um extenso depoimento, em que denuncia falhas graves na condução de um processo interno que teve início em abril de 2023, após a publicação de um capítulo de livro com acusações de assédio que ele considera "gravíssimas e totalmente falsas".
A renúncia, segundo o próprio, resulta de um "processo longo e doloroso", dividido em duas fases: o período de abril de 2023 até a divulgação do relatório de uma comissão independente, em março de 2024, e o período subsequente, que culminou com sua saída. O documento publicado na sexta-feira (2) refere-se à primeira fase.
Acusações e auto-suspensão - Boaventura afirma que teve conhecimento das acusações no dia 7 de abril de 2023, enquanto se preparava para uma viagem ao Chile. As denúncias constavam de um capítulo publicado por uma editora de prestígio, a Routledge, no qual ele e outros pesquisadores do CES eram alvo de críticas. A repercussão foi imediata, com cancelamentos de compromissos e atividades em diversas partes do mundo, incluindo uma suspensão temporária de suas funções na CLACSO.
O sociólogo relata que, mesmo diante do escândalo, nenhum representante da direção do CES procurou ouvi-lo. Ainda no Chile, em 14 de abril, ele decidiu por conta própria se auto-suspender de suas atividades para facilitar as investigações. No entanto, um comunicado do CES informava que a suspensão fora imposta pela própria direção, o que, segundo Boaventura, teve consequências drásticas para sua reputação: “um ‘erro’ fatal”, como classifica, que não foi corrigido a tempo de evitar o efeito cascata de sanções acadêmicas e editoriais.
"Perdi os meus orientandos sem ser ouvido" - Uma das críticas centrais do sociólogo é a falta de diálogo e de procedimentos regulares por parte da direção do CES. Ele relata que teve todos os seus orientandos de doutorado redistribuídos e que seu seminário no programa de Pós-Colonialismos e Cidadania Global foi cancelado, mesmo sem qualquer processo formal ou direito de defesa. “Retiraram conclusões definitivas de um ato provisório”, afirma. Ao tentar agendar uma reunião com a provedoria do CES, foi inicialmente ignorado e só mais tarde conseguiu ser recebido.
Durante uma reunião com a direção e o Conselho Científico, Boaventura apresentou três perguntas — sobre a falta de escuta prévia, a publicação equivocada da nota de suspensão e a retirada de seus orientandos —, mas obteve resposta apenas para a primeira: a confirmação de que a suspensão havia sido, de fato, voluntária.
Acusações sem provas e repercussões internacionais - Em sua defesa, Boaventura sustenta que o capítulo em questão "violava os mais elementares critérios científicos", e que nenhuma prova foi apresentada para embasar as acusações, que se baseavam em rumores, pichações anônimas e alegações subjetivas. Ele denuncia ainda que a Routledge retirou o capítulo do livro em setembro de 2023 após pressões de renomadas feministas e intelectuais, além da confirmação de que a obra violava a legislação inglesa de difamação.
“Estavam tentando me calar”, afirma Boaventura, ao relembrar que sua postura crítica frente à continuidade da guerra na Ucrânia já havia incomodado setores da imprensa e do sistema político. O sociólogo destaca também que foi o único entre os citados a sofrer sanções de proporções globais, o que atribui a um esforço concentrado para destruir sua imagem pública.
Críticas à condução interna e possível “golpe acadêmico” - No plano institucional, o fundador do CES fala em "estado de pânico" e "golpe de Estado científico". Segundo ele, setores internos teriam se aproveitado da crise para eliminar o prestígio das Epistemologias do Sul — linha de pesquisa que consolidou o reconhecimento internacional do centro e que ele liderava.
Boaventura contesta duramente a ideia de hegemonia teórica no CES, alegando que outras abordagens coexistiam e que eventuais ressentimentos entre pesquisadores deveriam ter sido resolvidos por critérios científicos, não por meio de “intrigas e atalhos difamatórios”. “A diversidade epistemológica sempre foi garantida”, assegura.
Racismo, ressentimentos e ataques da extrema direita - Ele também denuncia motivações raciais e geopolíticas por trás dos ataques contra sua colega Maria Paula Meneses, pesquisadora moçambicana e co-responsável por projetos estratégicos como o ALICE. Boaventura vê em parte das críticas uma reação racista contra a ascensão de uma pesquisadora africana em uma instituição portuguesa.
Além disso, acusa setores da extrema direita portuguesa e de uma “esquerda ressentida” de contribuírem para a guerra midiática e para alterações maliciosas em sua página da Wikipédia. “Em nenhuma instituição em que trabalhei vi tanta transparência como no CES”, escreve, ao criticar o que chama de “desconhecimento transformado em cultura de silenciamento”.
Reflexão final e proposta de futuro - No encerramento do texto, Boaventura lamenta o sofrimento pessoal que a crise lhe causou, mas expressa esperança na continuidade do CES: “estou confiante de que o CES poderá superar este período difícil e voltar a trilhar o caminho que o tornou uma referência internacional”.
Ele propõe que o centro seja integrado oficialmente à Universidade de Coimbra como unidade de pesquisa interdisciplinar, de forma a evitar conflitos internos e disputas de poder, e declara estar disposto a continuar contribuindo cientificamente.
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