“Sem a psicanálise, a atenção psicossocial não se sustenta como clínica”, diz Luciano Elia
Luciano Elia propõe uma ruptura com o modelo médico tradicional e defende a presença decisiva da psicanálise nos serviços públicos de saúde mental
247 - Em novo episódio do podcast Papo Curvo, transmitido pelo canal da TV 247, o psicanalista e professor Luciano Elia fez uma profunda reflexão sobre os desafios e os caminhos da atenção psicossocial no Brasil. O programa — que se propõe a fazer da psicanálise uma ferramenta pública de intervenção — discutiu as raízes políticas, sanitárias e clínicas dessa prática, com ênfase na diferença fundamental entre "assistência" e "atenção".
Segundo Luciano, a distinção entre os termos não é meramente semântica, mas reflete paradigmas opostos de cuidado. “A assistência remete a um modelo terapêutico voltado à doença, ao tratamento. A atenção, ao contrário, inclui a escuta, a prevenção e, sobretudo, a inclusão do sujeito em sua complexidade”, explicou. Ele pontuou que esse conceito nasceu do sanitarismo crítico, protagonista na resistência à ditadura militar nos anos 1970 e 80, e que impulsionou a criação do SUS.
Reforma psiquiátrica e o legado de Basaglia
Luciano, que atua há mais de três décadas na atenção psicossocial, traçou uma linha histórica que liga a reforma sanitária brasileira à emergência da reforma psiquiátrica. Fortemente influenciado pela psiquiatria democrática italiana de Franco Basaglia — defensor do fim dos manicômios e crítico das comunidades terapêuticas enquanto formas de aprisionamento — o movimento brasileiro optou por um modelo radical: “Queríamos acabar com o manicômio, não apenas humanizá-lo”.
Foi nesse contexto que nasceu o CAPS Professor Luiz Cerqueira, em São Paulo, primeiro Centro de Atenção Psicossocial do Brasil, fundado em 1987. “Eu estava lá”, lembrou Luciano, sublinhando a importância do vínculo direto entre a prática institucional e o engajamento militante de profissionais de saúde e psicanalistas.
Psicanálise no SUS: presença indispensável
Questionado sobre como a psicanálise pode contribuir para o fortalecimento da atenção psicossocial no SUS, Luciano foi direto: “Sem a psicanálise, a atenção psicossocial não se sustenta como clínica”. Para ele, o desafio está em romper com a ideia de que a escuta psicanalítica só pode acontecer no consultório. “O analista precisa estar entre muitos, no coletivo. O setting analítico muda, mas o desejo do analista precisa estar ali”, afirmou.
A partir de casos concretos, como o de adolescentes usuários de crack ou de crianças com autismo atendidas em CAPS, Luciano destacou como a transferência — conceito central da psicanálise — pode se dar de maneira coletiva, nos territórios, e não apenas em espaços fechados: “Às vezes, o menino só caía no chão depois de olhar para uma técnica específica. Isso é transferência. E é disso que estamos falando quando tratamos de sofrimento psíquico”.
A ofensiva neoliberal e o desmonte das políticas públicas
Elia denunciou o processo de esvaziamento da atenção psicossocial, que, segundo ele, foi intensificado a partir da inserção dessa modalidade dentro da lógica sanitária neoliberal. “Quando colocaram a atenção psicossocial na pirâmide da atenção em saúde, começaram a matá-la. O CAPS virou um posto de distribuição de medicação, controlado por OSs e submetido a protocolos tecnocráticos”, criticou.
Ele lamentou o desaparecimento da rubrica orçamentária específica para a atenção psicossocial e a fragilização das equipes, terceirizadas e sem estabilidade: “Acabaram com os concursos públicos e com o movimento de trabalhadores da saúde. Hoje, é quase impossível sustentar uma formação permanente e coletiva”.
Resistir é preciso: a universidade, a clínica e a luta coletiva
Apesar do cenário descrito como “penumbra desértica”, Luciano Elia aposta na potência da universidade e de espaços críticos como o próprio Papo Curvo para a retomada do projeto da atenção psicossocial. Ele citou a psicanálise lacaniana como uma das chaves para a reinvenção do cuidado: “Lacan nos ensinou que o analista pode estar no presídio, na favela, no CAPS, na universidade — onde houver sujeito, pode haver escuta psicanalítica”.
A conversa terminou com um chamado à organização dos profissionais que ainda acreditam na atenção psicossocial como política pública transformadora. “Precisamos nos unir. A política pública não vai mudar por si só. Mas há desejo, há memória e há prática. E isso ainda pode sustentar uma reinvenção do cuidado”, concluiu. Assista:
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