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      Gustavo Guerreiro

      Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

      8 artigos

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      Unir oceanos, dividir povos: a ferrovia que rasga o Brasil (e suas aldeias)

      No filme Terra Vermelha, uma cena emblemática retrata o conflito entre um indígena Guarani-Kaiowá e um fazendeiro que alega posse territorial

      No filme Terra Vermelha, uma cena emblemática retrata o conflito entre um indígena Guarani-Kaiowá e um fazendeiro que alega posse territorial por “direito familiar”. O fazendeiro berra sobre seus títulos de propriedade, mas o indígena, sem pronunciar uma palavra, apanha lentamente a terra — a mesma terra que o outro chama de “sua” — e a leva à boca, engolindo-a. Com isso, ele encarna o tekoha: a inseparabilidade entre território, corpo e cultura. A cena expõe a contradição central do anúncio da ministra do Planejamento, Simone Tebet, indicando que “Eles querem rasgar o Brasil com ferrovias”, sobre as prováveis obras das ferrovias a partir de um acordo com a China, especialmente da Ferrovia Bioceânica. O projeto promete conexão global, mas, sem os devidos cuidados, poder operar sob uma lógica colonial de fragmentação local.

      Somos uma nação sobre rodas. Desde Juscelino Kubitschek, as cargas brasileiras dependem essencialmente de caminhões, herança de um “progresso” que pavimentou florestas e direitos. Agora, a Ferrovia Bioceânica — fruto da recente parceria com a China — pode surgir como símbolo de uma guinada. Cruzará Mato Grosso, Rondônia e Acre, integrando o Brasil aos mercados asiáticos. Mas qual o preço dessa integração?

      Como dizia José Saramago, a história se repete nas diferenças, não nas semelhanças. Basta lembrar da famigerada “Marcha para o Oeste”, idealizada por Getúlio Vargas nos anos 1940. Sob o pretexto de ocupar “espaços vazios” — expressão que, por si só, já revela uma cegueira histórica —, o Estado brasileiro avançou sobre territórios indígenas, ignorando solenemente a presença ancestral de povos como os Xavante, Asurini e Parakanã. Estes, aliás, foram literalmente arrancados de suas terras, alguns colocados em aviões da FAB e despejados em áreas distantes, em operações que hoje seriam classificadas como limpeza étnica. O discurso mudou, mas a lógica persiste: o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem registrado centenas de casos de invasões em terras indígenas e violência decorrentes dessas, a maioria delas na Amazônia Legal e Centro-Oeste — justamente o coração da nova ferrovia.

      A Ferrovia Bioceânica não será apenas infraestrutura: será o braço logístico do agronegócio. Seus trilhos servirão para escoar soja e carne, commodities que respondem por 48% das exportações brasileiras (MDIC, 2023). Mas para os povos originários, a terra não é commodity. Como lembra o líder Yanomami Davi Kopenawa: “A floresta só está ‘intocada’ para quem não enxerga que ela já é habitada”. 

      A violência é sistêmica. Durante a ditadura militar, indígenas eram “entraves ao desenvolvimento”; hoje, são “empecilhos burocráticos”. O governo Bolsonaro institucionalizou essa visão: desmontou a Funai, paralisou demarcações e estimulou garimpos em terras Yanomami e Munduruku. Mesmo após sua derrota, o Congresso mantém projetos como o PL 490/2007, que inviabiliza novas demarcações. A ferrovia, nesse contexto, não será neutra: trará estradas ilegais, grileiros e desmatamento — segundo o IPAM, 75% do desmatamento na Amazônia ocorre a até 5 km de vias legais. 

      A Constituição de 1988 e a Convenção 169 da OIT garantem a consulta prévia, livre e informada a comunidades impactadas. Na prática, porém, o Estado age como em 1500: decreta, constrói, depois pergunta. Na construção de etapas da Usina de Belo Monte, o Ministério Público Federal ajuizou ações desde 2006 questionando a ausência de consulta prévia, e a Justiça determinou que as obras só poderiam prosseguir após a realização dessas consultas, o que gerou longos processos judiciais e paralisações parciais. A judicialização é uma armadilha. Enquanto o agronegócio avança com licenças relâmpago, os povos originários gastam décadas em tribunais. Mário Juruna, primeiro deputado indígena do Brasil, já denunciava nos anos 1980, quando dizia que o branco só entende a lei quando convém. Hoje, o cenário se repete: o projeto da ferrovia Ferrogrão (entre Pará e Mato Grosso enfrenta ações no Supremo Tribunal Federal e protestos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que questionam o impacto sobre terras indígenas e ambientais. A obra aguarda decisão judicial e revisões de estudos ambientais e indígenas.

      É preciso reconhecer a importância das ferrovias para o Brasil. Há estudos que e concluem que o transporte ferroviário pode reduzir as emissões em mais de 30% em relação ao rodoviário para o mesmo volume de carga transportada. Além disso, o transporte ferroviário também apresenta custos logísticos até 40% menores. São pesquisas que reforçam a sustentabilidade do modal ferroviário no transporte de cargas no país. Mas isso só fará sentido se rompermos com o modelo que enxerga a Amazônia como “fronteira” a ser conquistada. 

      A saída a necessariamente por gestos concretos. Em primeiro lugar, é urgente implementar consultas prévias reais — não meros simulacros burocráticos —, assegurando que os protocolos sejam definidos pelas próprias comunidades, em diálogo autêntico e sem pressões externas, sobretudo de Ongs oportunistas. Em segundo plano, não há justiça possível sem a demarcação imediata das terras indígenas paralisadas: são 827 processos engavetados na Funai, um descaso que mantém milhões de hectares sob risco de grilagem e violência. Também é preciso que o Estado garanta as compensações justas e necessárias aos territórios e povos afetados. Por fim, é fundamental a inclusão de lideranças indígenas no planejamento da ferrovia, reconhecendo seu conhecimento milenar como parte integrante do projeto. Afinal, quem melhor para equilibrar desenvolvimento e preservação do que aqueles que, há séculos, fazem da terra não um recurso, mas um parente?

      Como escreveu Ailton Krenak: “O futuro é ancestral”. Se os trilhos da Ferrovia Bioceânica servirem apenas para reproduzir a corrida por commodities, seremos cúmplices de mais um ciclo de violência. Mas se ouvirmos os povos que há milênios equilibram economia e ecologia, talvez descubramos que unir oceanos não precisa significar dividir terras, mas tecê-las.

      O gesto do Guarani-Kaiowá no filme não era só um protesto: era uma profecia. Engolir terra é recusar-se a aceitar que história, corpo e território sejam mercadorias. Enquanto o Brasil não aprender essa lição, seguirá construindo ferrovias para o ado — e não para o futuro.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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