Que ganhe o San Lorenzo, a América Latina e o Sul Global
O papa que pregava a paz, a justiça e a autodeterminação parte em um momento em que suas ideias podem ganhar tração política concreta
247 - Jorge Mario Bergoglio se tornou sócio do Club Atlético San Lorenzo de Almagro, do bairro de Boedo, em Buenos Aires, numa quarta-feira, 12 de março de 2008.
Talvez a jornada do time na noite anterior, em jogo válido pela fase de grupos da Copa Libertadores frente ao Real Potosí, fora de casa, tenha animado o cardeal de Buenos Aires a se filiar, finalmente, ao seu time de infância. O jogo foi vencido por três tentos a dois — placar bailarino — pelo clube portenho.
Uma virada histórica, já que o placar, no intervalo da peleja, marcava uma vantagem de dois gols a zero para os bolivianos, donos da casa. Os cuervos, como são chamados na Argentina, remontaram a diferença, com o gol derradeiro marcado aos 43 minutos do segundo tempo, de pênalti, pelo atacante Aureliano Torres, que vinha do banco.
A alegria da vitória pode, sim, ter movido Jorge Mario na direção de se associar ao clube. Mas, conhecendo sua trajetória — desde a defesa da democracia em seu país nos anos de chumbo da ditadura militar argentina até os doze anos que o tornariam um líder global -- é possível crer que havia mais intenções de justiça por trás do apoio registrado na carteirinha.
O San Lorenzo perdeu seu estádio, o imponente El Gasómetro, no bairro de Boedo, para o regime militar, no fim dos anos 1970. O clube abriu seus portões para protestos das Mães da Praça de Maio, que se manifestavam contra o desaparecimento de seus filhos durante o período do horror.
O clube teve de se mudar e busca até hoje a recuperação de seu campo. Um desafio financeiro para uma instituição que não é, nem de longe, das mais ricas do futebol argentino.
De volta à história de Jorge Mario: em 2013, ele se tornou Francisco — o primeiro papa latino-americano. Desde a escolha de seu nome, ficava claro seu olhar atento aos povos marginalizados do mundo.
Visitou Cuba em 2015 e teve papel-chave na reaproximação entre Havana e Washington, articulando o diálogo entre Barack Obama e Raúl Castro. Essa construção, porém, foi minada a partir de 2017 com a chegada de Donald Trump à presidência dos EUA e sua política de recrudescimento do bloqueio à ilha caribenha.
Já habituado ao nome de Francisco, porém sem se acomodar nos luxos do cargo, destacou-se como um dos líderes mais firmes na defesa dos direitos do povo palestino, denunciando a violência em Gaza e o bloqueio imposto por Israel. Em seus últimos meses, chamou atenção para o genocídio na região, defendendo o direito à autodeterminação e à vida em paz. Em artigo póstumo, publicado um dia após sua morte, disparou: “A ambos os povos e à comunidade internacional, eu diria: Deus e as gerações futuras nos julgarão não por quantos inimigos derrotamos, mas por quantas vidas salvamos”.
Suas palavras ressoam com ainda mais força quando confrontadas com as declarações recentes de Donald Trump e seu secretário de Defesa, Pete Hegseth. Em entrevista, Hegseth referiu-se à América Latina como “nosso quintal”, criticando a presença econômica da China e sugerindo que os EUA devem “recuperar” sua influência na região, inclusive sobre o Canal do Panamá.
A frase provocou indignação em países latino-americanos e recebeu forte resposta da diplomacia chinesa, que defendeu a independência dos latino-americanos frente a doutrinas de dominação.
Trump, por sua vez, chocou o mundo ao afirmar que transformaria a Faixa de Gaza em um resort, após sugerir a expulsão forçada da população palestina do território. A proposta, recebida com repúdio internacional, foi interpretada como uma apologia à limpeza étnica.
Essas posturas revelam, na verdade, um sinal de enfraquecimento da hegemonia americana. Longe de demonstrar poder, expõem o isolamento dos EUA em um cenário geopolítico em transformação.
A guerra tarifária com a China, iniciada por Trump, registrou alíquotas de até 245% e não surtiu o efeito desejado: Pequim retaliou com taxas similares e reforçou sua rede de parcerias comerciais na Ásia, África e América Latina.
Na Ucrânia, Trump havia prometido acabar com a guerra rapidamente. No entanto, três meses após o início de seu segundo mandato, a guerra persiste. Ele enviou um emissário pessoal a Putin, o empresário norte-americano Steve Witkoff, e retirou os EUA da liderança militar de apoio à Ucrânia.
As negociações, no entanto, parecem inócuas. Nem mesmo o direito de exploração de minerais estratégicos, concedido pela Ucrânia aos EUA — que outrora seria parte essencial de um acordo de paz — é visto hoje como moeda de troca neste cenário.
Nesse contexto, alguns líderes da América Latina parecem ter entendido que é necessária uma diplomacia assertiva, buscando reposicionar os países da região no cenário global com base em uma lógica de soberania.
Em encontro nesta terça-feira (22) com o presidente do Chile, Gabriel Boric, Lula criticou a política migratória americana e afirmou que os EUA tratam os latino-americanos como inimigos, apesar de terem contribuído para a construção da economia norte-americana.
Ao contrário da postura beligerante de Trump, Lula defende uma política externa multilateral e pragmática. Em diversas ocasiões, deixou claro que o Brasil não deseja escolher entre EUA e China, mas sim negociar com ambos conforme os interesses nacionais.
A fala de Hegseth sobre “quintal” e os planos de Trump para Gaza não apenas provocam indignação: alimentam um movimento de reafirmação da soberania latino-americana.
A retórica imperial, ao invés de submeter, une os países da região em torno de uma mesma resistência. Como afirmou o chanceler chinês Wang Yi, os países latino-americanos querem construir “sua própria casa”, não servir a doutrinas alheias.
Assim, a morte de Jorge Mario Bergoglio, ou Francisco, em meio a esse cenário, ganha um simbolismo profundo. O papa que pregava a paz, a justiça e a autodeterminação parte em um momento em que suas ideias podem ganhar tração política concreta.
A América do Sul, ao resistir às pressões externas e ao buscar seu lugar com dignidade no mundo, honra o legado de um papa que, até seu último suspiro, acreditou que a verdadeira força está na compaixão e na luta por justiça social.
O que se avizinha, portanto, não é apenas uma crise da hegemonia americana, mas a possível emergência de um novo paradigma: um momento em que os povos do Sul Global caminham com as próprias pernas, negociam com múltiplos parceiros e fazem da soberania seu novo nome de batismo. E isso, mais do que qualquer discurso, é o maior tributo que se pode prestar à memória de Francisco.
Em um vídeo que circula nas redes sociais, publicado pelo San Lorenzo, Francisco aparece cravando: “¡Y que gane San Lorenzo!”. Nós dizemos: que ganhe o San Lorenzo, o Brasil, a América Latina e o Sul Global.
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