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      Gustavo Guerreiro

      Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

      7 artigos

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      Quando a toga se mancha de sangue

      ONU alerta sobre o retrocesso que ameaça indígenas, florestas e a própria Constituição

      Indígena em frente ao prédio do STF (Foto: Joedson Alves/ABr)

      Não é todo dia que a Organização das Nações Unidas emite um alerta importante sobre políticas internas de um país. Mas quando o faz, é porque algo está realmente errado. No final de fevereiro, relatores especiais da ONU classificaram a proposta do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), como um “grande retrocesso” para os direitos indígenas, a proteção ambiental e a política climática. A reação internacional não poderia ser mais clara: estamos diante de uma tentativa de legalizar o ilegal, de negociar o inegociável. E, no centro dessa tempestade, está um nome que há décadas habita o noticiário jurídico-político brasileiro: Gilmar Mendes, o mesmo magistrado que, em 2023, votou contra o marco temporal no STF, mas agora parece articular nos bastidores um acordo que ameaça anular sua própria posição.

      Para entender a gravidade, é preciso fazer uma breve retrospectiva. Em setembro de 2023, o STF declarou inconstitucional o Marco Temporal — tese que restringe a demarcação de terras indígenas apenas a áreas ocupadas antes de 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal. Uma vitória histórica, celebrada por lideranças como a cacica Juma Xipaia, que na época declarou à Folha de São Paulo: “Finalmente, a justiça reconhece que existimos antes do Brasil”. Mas o Congresso, pressionado pela bancada ruralista, aprovou uma lei reinstaurando o marco, ignorando o STF. Agora, Mendes propõe uma “solução” que, na prática, parece mais uma armadilha: extinguir o Marco Temporal em troca de medidas como mineração em terras indígenas (TIs), entraves à demarcação e até a remoção de comunidades sob o pretexto de “paz social”. 

      Não é difícil enxergar o jogo de espelhos aqui. Enquanto o STF tenta se equilibrar entre a Constituição e as pressões políticas, Mendes — figura que já foi chamada de “juiz de ocasião” por críticos — parece querer reescrever as regras do jogo. Mas a que custo? 

      A proposta de Mendes inclui uma cláusula perversa: a possibilidade de remover indígenas de seus territórios tradicionais caso haja “conflitos fundiários” ou para garantir a “paz social”. Em troca, oferece “terras equivalentes”. Ora, mas o que seria uma “terra equivalente” para um povo cuja existência está entrelaçada com rios sagrados, montanhas ancestrais ou florestas que guardam a memória de seus anteados? Pergunte aos Guarani Kaiowá, expulsos de suas tekohas (terras tradicionais) no Mato Grosso do Sul e confinados em reservas superlotadas, onde a desnutrição infantil é endêmica. Ou aos Avá-Canoeiro, que, após décadas de deslocamentos forçados, lutam para reaver um fragmento mínimo de seu território original em Goiás.  É uma compensação que não compensa.

      A Constituição de 1988 é clara: as terras indígenas são “inalienáveis e indisponíveis”, e só permitem remoções em casos excepcionais, como epidemias ou guerras (Art. 231, §5º). Mas Mendes parece reviver o velho modus operandi do SPI (Serviço de Proteção aos Índios, antecessor da Funai), que no século XX removia comunidades inteiras sob a justificativa de “integracionismo” — política que deixou um rastro de mortes e etnocídio. É como se, em pleno 2025, ainda acreditássemos que indígenas não am de peças de um tabuleiro a serem movidas conforme a conveniência do agronegócio ou da mineração. A mineração em Terras Indígenas é o Cavalo de Troia do “interesse público”.

      Se há algo que a história recente ensinou, é que a mineração em terras indígenas nunca beneficia os povos originários. Basta olhar para Roraima, onde garimpeiros ilegais — muitos financiados por empresários com conexões políticas — devastaram a Terra Yanomami, levando à crise humanitária de 2023. Agora, a proposta de Mendes abre a porteira para que o governo declare atividades minerárias de “interesse público” em TIs, mesmo sem o consentimento das comunidades. 

      O argumento é sedutor para quem vê na Amazônia um “celeiro de recursos”. Mas esconde um detalhe sórdido: o “interesse público” frequentemente se confunde com o interesse de conglomerados empresariais nacionais e estrangeiros. Lembram-se do Projeto de Lei 191/2020, de autoria do governo Bolsonaro, que pretendia liberar mineração e hidrelétricas em TIs? A proposta de Mendes parece sua reencarnação, agora travestida de constitucionalidade. Enquanto isso, lideranças como Davi Kopenawa Yanomami advertem: O ouro está sujo com sangue Yanomami. O garimpo é uma ferida que não para de sangrar. E o governo quer ar mais sal nela?

      E não se trata apenas de direitos indígenas. Um estudo elaborado pelo MapBiomas, em uma iniciativa multi-institucional que reúne universidades, ONGs e empresas de tecnologia identificou as áreas indígenas como as mais bem preservadas do Brasil. Permitir a mineração ali seria como entregar as chaves do cofre climático global a quem já provou não ter escrúpulos, isso em pleno ano de Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas em Belém, no Pará. 

      Outro ponto nevrálgico é a burocratização extrema do processo de demarcação. A proposta exige a participação de Estados, municípios e até de proprietários rurais em disputas — ou seja, coloca os réus para julgar suas próprias causas. Enquanto isso, o texto autoriza o uso da Polícia Militar em reintegrações de posse, o que, na prática, significa criminalizar as retomadas indígenas.

      Enquanto representantes do agronegócio como a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) advogam pela "paz no campo" (entenda-se: ausência de manifestações), indígenas são vistos como ocupantes ilegítimos até mesmo nos territórios que constitucionalmente lhes pertencem. Um caso ilustrativo dessa hostilidade aconteceu quando tropas da PM sul-mato-grossense adentraram o Território Indígena de Dourados durante manifestação não-violenta dos moradores contra problemas de abastecimento hídrico, lançando explosivos nas residências da aldeia Jaguapiru e disparando contra pessoas completamente vulneráveis. Conforme levantamento do Cimi, quatro indígenas foram detidos, e aproximadamente 50 pessoas sofreram lesões, das quais somente 20 procuraram socorro hospitalar.

      Não menos grave é a forma como o acordo foi costurado. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal entidade representativa, se retirou da comissão de conciliação do STF que discute o tema. Em seu lugar, entrou a Frente Parlamentar Mista Indígena — grupo que, na prática, representa mais os ruralistas do que os indígenas.

      Por que um ministro do STF, cujo papel é zelar pela Constituição, está propondo um projeto de lei que a desfigura? Gilmar Mendes, aliás, já havia sido criticado por suas relações ambíguas com o poder político — e não é de hoje. Em reportagem da Folha de S.Paulo de 2002, o professor de direito Dalmo Dallari narrou um fato significativo: durante sua atuação como auxiliar do ministro Jobim na pasta da Justiça, no período FHC, Mendes envolveu-se em estratégias visando cancelar reconhecimentos territoriais dos povos originários. Naquele momento, ele contribuiu em discussões e sugestões sobre delimitações de áreas indígenas, particularmente quanto ao Decreto 22/91, que normatizava os procedimentos demarcatórios. Mendes ajudou a elaborar o Decreto 1.775/96, que acrescentou a necessidade do princípio do contraditório nas demarcações. Muitos interpretaram esta alteração como um esforço para questionar ou invalidar demarcações anteriores, principalmente aquelas posteriores à Carta Magna de 88.

      Longe de ser uma novidade, a proposta atual de Mendes parece resgatar um modus operandi que ele já praticava nos bastidores do Executivo: desconstruir garantias indígenas sob o véu de tecnicismos jurídicos. Não é difícil enxergar, portanto, uma linha de continuidade entre o assessor que buscava fragilizar direitos indígenas nos gabinetes do Planalto e o ministro que hoje propõe condicionar o fim do marco temporal à legalização de mineração e remoções forçadas. Como escreveu Dallari na época: Não se pode inventar teses jurídicas a reboque de opções políticas. A advertência, feita há 22 anos, soa profética diante da ofensiva atual.

      Se há algo a aprender com esse histórico, é que a atuação de Mendes não é um acaso, mas parte de um projeto que insiste em subordinar os direitos originários a interesses que a própria Constituição rejeita. Em se tratando de direitos indígenas é quase impossível achar meio termo. Quem já foi contra as demarcações no ado, dificilmente será seu guardião no futuro.

      A condenação da ONU não é, portanto, um mero protocolo diplomático. É um alerta para que o Brasil não repita os erros de um ado colonialista, mas persistente, disfarçado agora em roupagens jurídicas. A proposta de Mendes, sob o véu de um “acordo”, esconde uma barganha perversa: em troca do fim do Marco Temporal (que já é inconstitucional!), exige-se a legalização de medidas que violam direitos originários e ameaçam o equilíbrio ecológico do país. 

      Há quem argumente que “algum acordo é necessário”. Mas como negociar quando a contrapartida é a própria dignidade humana? A Constituição de 1988 não foi feita para ser um documento flexível, moldado conforme os ventos do Congresso ou as conveniências de governos e ministros. Ela é clara: os direitos indígenas são “originários” (Art. 231), ou seja, anteriores ao próprio Estado. Não há “troca” que justifique violá-los. 

      Se há uma lição a ser aprendida com líderes como Raoni Metuktire ou Sônia Guajajara, é que a resistência indígena não é um capricho, mas uma luta pela sobrevivência física e cultural. Permitir que mineração, remoções e violência se normalizem é compactuar com um projeto de nação que enxerga suas matas e seus biomas como uma commodity, e seus povos como obstáculos a um “progresso” que se sabe muito bem a quem atende.

      Ao STF, cabe lembrar seu papel de guardião da Constituição — e não de mediador de acordos espúrios. Ao Congresso, urge rejeitar propostas que transformam direitos fundamentais em moeda de troca. E à sociedade, resta pressionar para que o Brasil não seja lembrado como o país que, no século XXI, preferiu voltar ao século XIX à justiça e à democracia. 

      Como escreveu o líder indígena Ailton Krenak em Ideias para Adiar o Fim do Mundo: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais”. Que não sejamos nós a confirmar essa previsão.

      A Constituição não é um documento negociável, e os povos indígenas não são moedas de troca em um jogo político. Como alertou a ONU, o preço do retrocesso será pago por todos nós — em florestas devastadas, culturas apagadas e um clima cada vez mais hostil. A vida exige coragem para dizer não.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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