O posicionamento ocidental diante do genocídio em Gaza: um despertar tardio?
O tiroteio ocorrido ontem contra uma delegação diplomática europeia na Cisjordânia é um lembrete claro da crescente divisão entre Israel e o Ocidente
As reações dos países ocidentais foram adiadas por tempo demais, enquanto a máquina de matar israelense, por dezoito meses, mergulhou dia e noite no sangue dos palestinos na Faixa de Gaza. Destruiu mais de 92% das residências, matou e feriu quase 8% da população local, atacou feridos, médicos e pacientes em hospitais; deslocados em seus locais de fuga; estudantes em escolas; fiéis em mesquitas e igrejas; jornalistas em seus ambientes de trabalho; e funcionários das Nações Unidas — especialmente os ligados à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA).
Após tudo isso, impediu o fornecimento de comida, água, combustível e medicamentos por dois meses, transformando o ato de matar crianças em um “hobby”, segundo declaração do líder de um partido israelense. Seus ministros celebraram as mortes e, mesmo assim, o governo decidiu intensificar as operações militares, convertendo a Faixa de Gaza em um pedaço do inferno na Terra — um cenário “apocalíptico” sem precedentes na história moderna. As Nações Unidas alertam para a possibilidade de 14 mil crianças morrerem de fome em apenas 48 horas.
Como resposta tardia a essa tragédia, Israel recebeu advertências sucessivas. O parlamento espanhol aprovou a proibição da venda de armas ao país, e seu primeiro-ministro o classificou como um “Estado genocida”. O Reino Unido suspendeu as negociações de livre-comércio com Israel e anunciou sanções contra colonos. Ao lado da França e do Canadá, emitiu uma declaração conjunta classificando o nível de sofrimento na Faixa de Gaza como “inável”, com a promessa de adotar medidas punitivas. A União Europeia decidiu reavaliar seu acordo de parceria com Israel.
Irlanda e Espanha já haviam proposto essa revisão em uma carta enviada há 15 meses, sem conseguir, à época, apoio expressivo dos demais países-membros da UE. No entanto, é notável que a proposta — agora amplamente apoiada — tenha sido reapresentada pelo governo dos Países Baixos, um tradicional aliado de Israel. Isso indica uma mudança significativa na forma como os 27 membros da União Europeia encaram o conflito.
Essa mudança gradual levou tempo para consolidar uma convergência entre as posições de países como Espanha, Irlanda e Eslovênia, que adotaram uma postura ativa e firme no intuito de barrar o envolvimento europeu com Israel em uma guerra que, desde outubro de 2023, ultraou em muito a narrativa limitada do “direito de Israel à autodefesa”, tornando-se uma campanha sistemática de extermínio contra os palestinos em Gaza.
Por razões históricas e políticas, a maioria dos países europeus mantém relações “orgânicas” com Israel. Isso ficou evidente com a morte e captura de diversos cidadãos israelenses com nacionalidade europeia durante a Operação Borda Protetora. Desde sua fundação, Israel tem conseguido explorar os diversos elementos dessa relação entre o Estado hebraico e as comunidades judaicas — desde a influência financeira e midiática até o chamado “complexo do Holocausto” —, transformando-a em uma espécie de “vaca sagrada” da política internacional, cuja crítica é tratada como um ataque aos próprios fundamentos do surgimento da Europa moderna (especialmente da Alemanha).
Nos esforços para promover o surgimento de Israel, o Ocidente combinou elementos terrenos e religiosos, como a expulsão de judeus europeus e seu assentamento na Palestina — apresentados como solução para a “Questão Judaica” — com a preservação dos interesses ocidentais no Oriente Médio. Somam-se a isso fantasias orientalistas que atribuem ao Ocidente a missão de conduzir os judeus à “Terra Prometida” e cumprir as profecias do Antigo Testamento, sem mencionar as recentes ilusões trumpistas sobre transformar Gaza em uma “Riviera”.
Enquanto isso, o próprio Israel evoluiu de um grupo fundador composto por “socialistas seculares” — que acreditavam nos kibutzim e nos assentamentos agrícolas — para uma liderança dominada por sionistas religiosos, muitos dos quais são acusados ou já foram processados por crimes nacionais e internacionais. O pequeno Estado “democrático”, que alegava apenas se defender de um “mar de árabes” disposto a esmagá-lo, tornou-se um dos mais poderosos braços nucleares, militares e de segurança do mundo, impondo terror não apenas sobre os árabes, mas sobre toda a comunidade internacional. Seu projeto político evoluiu e hoje se alinha, na prática, às tendências da extrema-direita europeia — herdeira do nazismo e do fascismo —, com uma modificação histórica no eixo da opressão: do “extermínio dos judeus” ao deslocamento forçado de árabes, muçulmanos, imigrantes e outras minorias.
Esse projeto de extrema-direita ganhou apoio expressivo com a ascensão do trumpismo nos Estados Unidos, movimento que historicamente minou a ordem mundial moderna e os valores universais sobre os quais a Europa contemporânea foi fundada. Isso ajuda a explicar, por exemplo, a emissão recente de uma declaração conjunta de condenação por parte da Grã-Bretanha, França e Canadá — países diretamente ameaçados por essa onda política reacionária impulsionada por Trump.
O tiroteio ocorrido ontem contra uma delegação diplomática europeia na Cisjordânia é um lembrete claro da crescente divisão entre Israel e o Ocidente — uma situação que, ao que tudo indica, tende a se agravar.
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