O mártir apodrece, o algoritmo alimenta: a guerra afetiva do grotesco de Bolsonaro
O grotesco é o afeto que organiza o gozo fascista. E não qualquer gozo. Um gozo invertido, um prazer na destruição simbólica do outro
Bolsonaro morreu mesmo. E se exibiu. Mas o espetáculo não termina com sua internação. Ele só se intensifica, se transmuta, se espalha em vídeo, em post, em reels, em meme. Como nos ensinou Sara Goes em sua autópsia estética do bolsonarismo, o corpo apodrecido do ex-presidente não é a antítese de seu projeto. É o próprio projeto. Um corpo que arrota, que inflama, que delira e que se nega à cura. Um corpo que fede porque é disso que se alimenta o algoritmo. Mas há algo mais nesse grotesco que pulsa e mobiliza. Há um afeto que não se contenta em repugnar. Ele fideliza sim. Ele convoca. E mais do que isso, ele forma subjetividades.
Porque o grotesco não tem o mesmo peso afetivo para todos. Para os democratas, o grotesco é alerta. É sinal de que algo está errado. É o ruído dissonante que convoca o nojo, a angústia, o impulso ético de recusa. Para a esquerda, a imagem da abjeção é uma violência a ser desvelada, denunciada, exposta como sintoma do colapso. Mas para a base fascista, esse mesmo grotesco reverbera de outra forma. Ele não convoca a recusa. Ele clama por purificação. Ele não é o desvio. É o sinal. É um afeto em estado bruto, pulsando no centro de uma cosmovisão paranoica e moralista. Para essa base, o grotesco não é aberração. É evidência de que há um inimigo e de que é preciso eliminá-lo.
É nesse ponto que o grotesco se torna não apenas linguagem, mas dispositivo de guerra. Uma guerra afetiva, travada não por argumentos, mas por sensações. Não por projetos de país, mas por gestos de aversão e desejos de extermínio. O grotesco é o afeto que organiza o gozo fascista. E não qualquer gozo. Um gozo invertido, um prazer na destruição simbólica do outro. A cada imagem que escancara corpos abjetos, seja o da travesti espancada, do indígena invisibilizado, do pobre ridicularizado, a base se nutre. Ri, compartilha, venera. A gargalhada aqui é arma. Ela transforma a dor do outro em motivo de pertencimento. Como na cena em que Bolsonaro imita uma pessoa morrendo com falta de ar durante a pandemia, zombando do desespero de milhares que agonizavam sem oxigênio nos hospitais. Ou quando ri abertamente da morte de Rubens Paiva, desaparecido na ditadura. Ou ainda quando despreza e desumaniza a memória de Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados na Amazônia, insinuando que “isso acontece com quem vai por ali”. Em cada um desses episódios, a dor do outro é convertida em espetáculo. A agonia vira punchline. O luto se torna palanque. E é nesse teatro do escárnio que a base se reconhece, se reafirma, se alinha. Porque o grotesco aqui não é acidente. É doutrina.
E o algoritmo, atento, recompensa. Ele não julga. Ele entrega. Ele distribui o grotesco como vício, como quem oferece pequenas doses de desprezo para manter o sujeito engajado. O grotesco é dopamina fascista. Não é por acaso que os vídeos mais vistos são os mais escatológicos. O corpo bolsonarista, putrefato, sempre retorna. Internado ou não, ele aparece em alta resolução, em câmera lenta, em looping. Porque quanto mais escárnio, mais cliques. E quanto mais cliques, mais política.
A guerra cultural não é travada no campo da razão. Ela é disputada nos subterrâneos do afeto. O grotesco é a granada estética dessa guerra. Ele invade a sensibilidade anestesiada e a violenta. Não pelo choque, mas pela adesão. A repulsa deixa de ser uma linha de recuo e vira o início da radicalização. E é aí que a política do grotesco se torna mortal. Porque ela transforma o espectador em cúmplice. Depois, em soldado. O mártir fascista apodrece, sim. Mas sua decomposição é evangelho. Cada secreção é sinal. Cada gaze, cada fístula, cada gemido se converte em argumento. Um argumento pré-racional, afetivo, irracionalista. Porque o fascismo não opera pela persuasão. Ele opera pela sensação. E o grotesco é sua estética de guerra.
O cadáver de Bolsonaro, ainda que vivo, não pede compaixão. Ele exige culto. Um culto ao sofrimento performado, à vitimização como tática, à doença como messianismo. É o corpo agonizante do líder como metáfora de um país que também sangra. Mas não para curar. Sangra para unir os que desejam vingança. E o algoritmo, silencioso, registra tudo.
Para Sara Goes, cujo olhar afiado e escrita luminosa não apenas desvelam as camadas do presente, mas também fazem da análise um gesto de coragem e beleza. Este texto se inscreve como um eco, uma dobra, talvez um sussurro intelectual na mesma frequência em que sua voz ressoa, precisa, inquieta e irremediavelmente necessária.
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