No Japão, motorista rouba 40 reais e perde 500 mil reais de indenização
Caso chama atenção e mobilizou a opinião pública japonesa para os limites da ética no trabalho e as consequências de pequenas faltas no serviço público
Se acontecesse no Brasil, o episódio poderia parecer piada ou conto da carochinha. Mas no Japão é fato concreto. Em Tóquio, um motorista de ônibus, com quase três décadas de serviço exemplar, perdeu seu direito à aposentadoria no valor de cerca 500 mil reais após ser flagrado desviando o equivalente a apenas 40 reais da venda de agens. O caso, ocorrido na cidade de Quioto, repercutiu em todo o país e agora levanta discussões sobre a moralidade no ambiente de trabalho e a rigidez das instituições diante de desvios de conduta, mesmo que considerados pequenos.
Em 2022, câmeras de segurança instaladas no ônibus que o homem dirigia (seu nome não foi revelado, também por força de leis que, no Japão, protegem a dignidade da imagem pública dos cidadãos) captaram o momento em que o motorista recebeu pessoalmente uma nota de 1.000 ienes (cerca de 40 reais) de um grupo de ageiros e não declarou o valor, contrariando os procedimentos da empresa.
Apesar da quantia ser irrisória frente aos valores normalmente envolvidos em casos de corrupção, a Prefeitura de Quioto tratou o episódio com todo o rigor da lei. O motorista, que já havia sido advertido anteriormente por outros pequenos incidentes, foi demitido e teve seu bônus de aposentadoria integralmente negado.
Ele entrou com processo judicial contra a cidade, alegando que a punição era desproporcional. Inicialmente, a corte de apelação lhe deu razão, anulando a penalidade. No entanto, a Suprema Corte do Japão reverteu a decisão, validando a sanção da prefeitura com base no princípio de que a conduta do funcionário poderia “minar a confiança do público no sistema” e comprometer a integridade do serviço de transporte coletivo.
“Cada motorista de ônibus trabalha sozinho e lida com dinheiro público. Levamos muito a sério esse ato de apropriação indevida”, declarou Shinichi Hirai, representante do departamento de transportes públicos de Quioto.
A moralidade como pilar da vida profissional
O caso do motorista de Kyoto é emblemático não pelo valor monetário envolvido, mas pelo que representa: uma quebra da confiança entre servidor público e sociedade. Em muitos países, atitudes como essa poderiam ar despercebidas ou resultar apenas em advertências. No entanto, o Japão — cuja cultura de trabalho valoriza fortemente a ética, a disciplina e o senso de responsabilidade coletiva — mostra com esse caso que não há espaço para desvios, por menores que sejam.
No País do Sol Nascente, a moralidade no trabalho não é apenas uma questão de cumprir regras, mas de preservar os valores que sustentam o bom funcionamento das instituições. “Quando o profissional falha, mesmo em algo aparentemente insignificante, abre-se uma brecha para a desconfiança generalizada e o enfraquecimento dos sistemas públicos”, afirma Shinichi Hirai.
Para as autoridades japonesas, o episódio serve como alerta não apenas para servidores, mas para todos os profissionais: integridade não é medida pelo tamanho da infração, mas pelo compromisso constante com a honestidade, mesmo quando ninguém está olhando.
É claro que a decisão da Suprema Corte japonesa divide opiniões. Muita gente protestou, comentários inundaram as redes sociais, externando opiniões mais ou menos como: “Vocês punem com extremo rigor os ladrões de galinha. Por quê deixam impunes os magnatas das finanças, os governantes e políticos ladrões?”. Ou: “Não seria possível uma penalidade proporcional, uma advertência, uma suspensão?” . Talvez. Mas há algo de poderoso na mensagem ada pela justiça japonesa: não é só sobre o que você faz, é sobre o que representa. Para um servidor público, principalmente, essa representação é tudo. São apenas 40 reais, uma quantia que muitos considerariam irrelevante, especialmente frente a uma aposentadoria de dezenas de milhares. Mas não é o valor que está em jogo — é o símbolo.
O caso pode soar extremo, até cruel, sob os olhos de culturas mais permissivas ou que relativizam pequenos deslizes – como, sabemos muito bem, é o caso da brasileira. Afinal, quem nunca viu um “jeitinho”, um troco não devolvido, uma “pequena vantagem” sendo normalizada? Aqui, no nosso país da lei de Gérson, esses deslizes parecem normais. Mas o Japão pensa diferente — e talvez esse seja o ponto que mais nos incomoda: a firmeza moral de uma sociedade que entende que ética não é questão de tamanho, mas de princípio.
Não se trata de punir severamente um homem por 40 reais. Trata-se de proteger um pacto silencioso entre o servidor público e a população: o compromisso com a confiança. Quando alguém que lida com dinheiro público age de forma desonesta — mesmo que por poucos centavos — abre-se uma rachadura nesse pacto. E onde há rachadura, há risco de ruína.
Porque às vezes, 40 reais podem valer muito mais do que dinheiro: podem custar a nossa dignidade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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