Muito além da IA, bebês reborn e hologramas desvendam solidão do circo virtual
O abismo digital é vivo, alimentado por nossos clicks e silêncios, e ele sussurra de volta, amplificando nossa solidão ou nossa humanidade
“Sabe que existe vida fora da internet?”, perguntou um amigo, rindo. O outro, sem tirar os olhos do celular, respondeu: “Manda o link!”. Essa piada, que circula como meme (uma ideia ou imagem viral), é um espelho hilário e incômodo do nosso tempo. Vivemos numa era em que o virtual não apenas complementa, mas muitas vezes substitui o real, transformando relações, emoções e até a saúde em um espetáculo digno de um “Circo dos Horrores” moderno. Palavras em inglês, como meme ou link (hiperlink para ar conteúdo), já são parte do nosso vocabulário, refletindo como o digital molda até nossa linguagem.
Os Freak Shows, espetáculos populares entre os séculos XVI e XX, exibiam pessoas ou objetos considerados “anormais” para entreter multidões curiosas. Eram apresentados, por exemplo, indivíduos com deformidades físicas, como o “Homem Elefante”, ou artistas com habilidades excêntricas, como engolidores de fogo. Hoje, a internet nos hipnotiza com excessos que vão de bebês reborn a casamentos com hologramas, amplificados pelo que chamamos de click-bait (conteúdo sensacionalista para atrair cliques), mostrando uma sociedade sedenta por atenção e validação online. Mas o preço é alto: o isolamento digital corrói nossa saúde mental e física.
Enquanto isso, a inteligência artificial (IA) se infiltra no cotidiano, prometendo soluções para a solidão e a angústia. Mas será que estamos apenas trocando um vazio por outro? O que era curiosidade mórbida nos Freak Shows virou, hoje, uma busca por conexão num mundo hiperconectado, porém solitário.
Bonecas e hologramas em busca da perfeição
Os bebês reborn, bonecas hiper-realistas que simulam recém-nascidos, são um exemplo fascinante e perturbador. Criadas para ajudar no luto, elas agora são “adotadas” por pessoas que as tratam como filhos, com rotinas de cuidados e perfis em redes sociais. Esse apego, potencializado pelo engagement (envolvimento) nas plataformas digitais, reflete uma fuga da realidade.
No Japão, Akihiko Kondo “casou” com Hatsune Miku, uma personagem holográfica, em 2018. Ele investiu US$ 18 mil na cerimônia, buscando um amor idealizado, livre das imperfeições humanas. Esses casos mostram como o virtual, com seus avatars (representações digitais) e holograms (imagens tridimensionais), oferece refúgio, mas distancia das relações reais. A perfeição artificial, embora tentadora, muitas vezes amplifica a solidão que pretende aliviar.
IA toma de assalto o nosso cotidiano
A inteligência artificial não é só para especialistas. Para o cidadão comum, três usos principais destacam-se. Primeiro, assistentes virtuais como Alexa e Siri, que organizam rotinas, respondem perguntas e controlam dispositivos domésticos via smart homes (casas inteligentes). Segundo algoritmos de recomendação em plataformas como Netflix e Spotify, que personalizam conteúdos com base em machine learning (aprendizado de máquina). Terceiro, chatbots de e emocional, como Woebot, que oferecem terapia ível baseada em cognitive-behavioral therapy (terapia cognitivo-comportamental).
Esses usos democratizam a IA, mas também revelam sua dualidade. Um estudo da Talk Inc (2024) mostrou que 10% dos brasileiros usam chatbots para desabafar, buscando alívio para a solidão. Cerca de 60% desenvolvem apego emocional, tratando a IA como humana, o que pode intensificar a desconexão social. A IA, ao mesmo tempo que facilita, desafia nossa capacidade de manter laços reais.
Terapia virtual entre alívio e dependência
A IA também é procurada para fins terapêuticos e existenciais. Chatbots como Wysa e Replika ajudam a gerenciar ansiedade e depressão, oferecendo e 24/7. Um estudo de 2025 mostrou que o Replika evitou 30 tentativas de suicídio em 1.000 estudantes, mas 496 usuários relataram dependência emocional. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que, apesar do potencial, a IA não substitui a empatia humana e pode disseminar desinformação.
Muitos buscam na IA um sentido para a vida. Aplicativos de mindfulness (prática de atenção plena) e assistentes que simulam conversas filosóficas atendem a essa demanda, mas correm o risco de oferecer respostas genéricas. A American Psychological Association (APA) estima que, em 2023, mais de 10 mil apps de saúde mental existiam, muitos sem validação científica, o que pode agravar o isolamento. O excesso de tempo diante das telas, com mais de seis horas diárias, aumenta o risco de depressão, ansiedade e até a text neck syndrome (síndrome do pescoço de texto), que já afeta crianças.
Telas e solidão pagando o preço da conexão
E por falar em ironia, aqui vai outra piada: “Ei, você já tentou viver offline por um dia?”, perguntou um colega. “Claro, mas meu Wi-Fi caiu, então não conta!”, retrucou o outro. A graça esconde uma verdade: o virtual é nossa zona de conforto, mas também nossa prisão. O home office (trabalho remoto), embora prático, intensifica a solidão crônica. Como disse Will.i.am no Fórum Econômico Mundial de 2025, se alimentarmos a IA com rage clicks (cliques movidos por raiva) e trolling (provocações online), o futuro será um reflexo do pior de nós.
Precisamos refletir: que futuro estamos construindo? A internet é poderosa, mas seu uso desenfreado pode nos levar a uma distopia de relações falsas. Dados da OMS mostram que a depressão aumentou 25% globalmente entre 2020 e 2025, com o isolamento digital como agravante. A APA alerta: o uso excessivo de redes sociais eleva em 30% os transtornos de ansiedade.
Muito Além do Jardim, o filme cultuado com o Peter Sellers nos anos 1980, revela que o óbvio esconde entrelinhas, onde palavras simples geram mal-entendidos profundos, como dizia Átila: a palavra é uma fonte de mal-entendidos. A superestimação da inteligência artificial, ainda engatinhando e longe de uma avaliação clara de custos e benefícios para humanos, o excesso virtual e fenômenos como bebês reborn ecoam essa lição: há muito além da IA, camuflado em promessas e projeções, aguardando reflexão.
Anglicismos traz muitos estragos para a língua portuguesa
Ao longo deste artigo, senti a necessidade de explicar 15 anglicismos – de meme a trolling – que invadiram nosso idioma como um tsunami digital. Essa enxurrada de termos ingleses, embora prática, sequestra a beleza da “última flor do Lácio”, como Camões chamou o português. Se os cultores da nossa língua não trabalharem para preservar sua riqueza, corremos o risco de adotar o inglês como ferramenta principal de comunicação. A língua é um espelho da nossa identidade; deixá-la ser engolida pelo mainstream (corrente dominante) digital é renunciar a quem somos.
O abismo digital como espelho vivo
Imagine o digital como um lago profundo, de águas escuras e hipnóticas, onde cada scroll (rolagem na tela) é um mergulho. Quando olhamos para esse abismo, como dizia Nietzsche, ele também nos encara, não com olhos, mas com o reflexo distorcido de nossas escolhas, medos e anseios. Cada like (curtida), cada post (publicação), cada hora perdida na tela molda esse reflexo, que nos devolve não apenas quem somos, mas quem permitimos nos tornar. O abismo digital é vivo, alimentado por nossos clicks e silêncios, e ele sussurra de volta, amplificando nossa solidão ou nossa humanidade. Cabe a nós decidir o que ele verá ao nos fitar. À minha dúzia de leitores do Brasil247, lanço um desafio: que reflexões esse texto desperta para o seu dia a dia? Como você se posiciona diante desse lago que reflete e transforma? Isso é bom ou é mau?
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