Gzuis ou Jesus? Será que vale tudo em nome de Deus?
Será que a fé é instrumentalizada para justificar a exclusão, o silenciamento e a aniquilação dos que não se encaixam nos moldes de um ideal pré-estabelecido?
O fervor de mais uma Marcha para Jesus tomou as ruas do Rio neste sábado, sob o lema "A paz é para todos!". Uma promessa poderosa e inclusiva que ecoa em um Brasil sedento por harmonia. No entanto, enquanto a multidão clamava por paz, uma pergunta incômoda se impõe: em nome de qual "deus" (com "g" minúsculo de god - aquele do capital, talvez, para as distorções que o esvaziam de seu sentido maior) essa paz é buscada? Será que a fé, por vezes, é instrumentalizada para justificar a exclusão, o silenciamento e até a aniquilação daqueles que não se encaixam nos moldes de um ideal pré-estabelecido?
A profundidade dessa indagação nos leva a um território complexo, onde a fé e a política se entrelaçam de maneiras surpreendentes e, por vezes, perigosas. A tese de Heike Schotten, traduzida por Sara Wagner York, há alguns anos em "Existir é Resistir: Palestina e a Questão da Teoria Queer", oferece um prisma afiado para essa reflexão.
O Silêncio Imposto pela Definição
O pensador Edward Said nos alertou: quando uma pessoa ou um lugar é caracterizado como "a questão de X" (como "a questão palestina", "a questão da mulher", "a questão do negro", ou até mesmo, hoje, "a questão queer"), isso não é apenas uma forma de descrever, mas um ato de poder. É uma arrogância que pressupõe o direito de caracterizar o outro em termos que questionam sua própria existência. Pior: ao levantar "a questão de X", raramente se está perguntando ao próprio X. Estamos, na verdade, perguntando a outros sobre "o que faremos com eles"> if (googletag && googletag.apiReady) { googletag.cmd.push(() => { googletag.display(id); }); }
A Teoria Queer: Resistência pela Indefinição
De forma ressonante, a Teoria Queer, campo de estudo que floresceu na academia dos EUA nos anos 90, oferece uma resistência semelhante. Lauren Berlant e Michael Warner, ao se recusarem a responder à pergunta "o que a Teoria Queer nos ensina sobre X?", afirmam que o queer não busca utilidade para os sistemas vigentes. Ele se recusa a ser definido, a ser sistematizado, precisamente porque sua força reside na desestabilização da normalização. A queerness é, em si, um nome para a não-identidade, um método que se deleita em revelar as impropriedades ocultas e em celebrar as "perversidades" que os regimes hegemônicos buscam apagar.
A "utilidade" da Teoria Queer está em sua recusa em se tornar útil a regimes de poder que, por definição, denigrem e buscam destruir o desvio que eles inevitavelmente produzem. Há, portanto, uma sobreposição inusitada: tanto a Palestina quanto a Teoria Queer representam o "inconveniente", o "impensável" para os regimes de poder. Sua própria existência constitui uma forma de dissidência.
Existir é Resistir: O Encontro Improvável da Luta
A ressonância mais profunda é que tanto palestinos quanto a Teoria Queer resistem à eliminação e à assimilação. Eles se recusam a desaparecer, a serem incorporados por regimes hegemônicos - seja o sionismo, no caso da Palestina, ou a heteronormatividade, no caso da queerness. Essa recusa em aceitar um status imposto como "problemas" ou "questões" é uma dissidência pela existência.
Mas a reflexão vai além. A Teoria Queer tem se expandido para abraçar discussões sobre raça, classe, nacionalidade, gênero e deficiência, tornando-se uma ferramenta poderosa para analisar hierarquias e exclusões.
Pinkwashing, Homonacionalismo e a Necropolítica
É nesse ponto que a linha entre a "paz para todos" e a instrumentalização da fé se torna mais tênue e perigosa. A crítica ao pinkwashing (termo que nomeia e condena a campanha de marketing oficial de Israel para se apresentar como "gay friendly", como um oásis de tolerância no Oriente Médio, para desviar a atenção de sua ocupação e apartheid) e ao homonacionalismo (a assimilação de alguns sujeitos gays e lésbicos ao mainstream nacionalista, muitas vezes relegando árabes, muçulmanos e outras minorias à figura do "terrorista") é brutal.
Essa "tolerância" se torna uma racionalização da violência racista e da colonização. A defesa dos direitos LGBTQ+ euro-americanos, nesse cenário, funciona como a ponta afiada da lança do império e da colonização, justificando agressões, intervenções e prisões.
A teoria da necropolítica queer aprofunda essa análise, mostrando como certas pessoas ou populações LGBTQ+ (brancas, ocidentais, do Norte Global) são privilegiadas e se tornam o "padrão LGBTQ+", enquanto outras - pessoas de cor, indígenas, do Sul Global, muçulmanos - são "abjetadas", marcadas para a morte e a negligência. Essas vidas são tornadas "esquisitas" em um sentido pejorativo, justificando sua desvalorização e eliminação.
Deus no Divino e não na Injustiça
Ao final, a Marcha para Jesus, com seu apelo à paz, nos convida a questionar: essa paz é para todos, inclusive para aqueles que, por sua existência (seja palestina, queer, ou de qualquer minoria que se recusa a desaparecer), são constantemente questionados e silenciados?
A profundidade dessas reflexões nos força a um exame crítico sobre o que significa invocar o nome de uma divindade para justificar políticas de exclusão, apagamento e violência. A verdadeira fé, talvez, se revele não na adesão cega a dogmas ou na busca por uma "utilidade" que normalize a opressão, mas na capacidade de acolher a existência diversa e na resistência contra toda e qualquer forma de abjeção. Gzuis ou Jesus? A resposta parece residir na forma como tratamos aqueles que, por sua simples existência, resistem e se recusam a desaparecer. A paz genuína exige mais do que um slogan; exige reconhecimento, respeito e uma profunda descolonização de mentes e corações.