Estamos à beira de um novo Oriente Médio?
Com o novo acordo firmado com Trump, a liderança síria alinhou sua posição à da Arábia Saudita na questão da normalização com Israel
É como se vivêssemos em um mundo de fantasia. O que era inimaginável há alguns meses agora se tornou real diante dos nossos olhos.
Quem imaginaria que Abu Muhammad al-Julani — por cuja cabeça os Estados Unidos haviam oferecido uma recompensa de dez milhões de dólares, vivo ou morto — se encontraria com o presidente estadunidense Donald Trump, que, diante de um auditório lotado, anunciou o levantamento das sanções à Síria? O público o recebeu com aplausos e uma ovação de pé por vários minutos, irando essa atitude ousada. A alegria se espalhou pelas cidades sírias que haviam sofrido um cerco longo, brutal e abrangente.
Quem imaginaria que o presidente dos EUA faria um acordo com os Houthis para interromper os combates, excluindo Israel, enquanto os mísseis hipersônicos do grupo Ansar Allah continuavam a cair sobre o Aeroporto de Lod, fechando-o ao tráfego aéreo — sem provocar reações duras do principal aliado da entidade, que financiou a guerra de extermínio e forneceu todo tipo de armas, munições e inteligência?
Quem imaginaria que, nos primeiros 100 dias, o governo Trump abriria negociações com o Irã, via Omã, sobre seu programa nuclear? E mais: quem imaginaria que o presidente estadunidense — que havia estabelecido um prazo para que o Hamas e as facções da resistência palestina libertassem todos os reféns incondicionalmente, sob a ameaça de que os portões do inferno se abririam — voltaria atrás e abriria canais diretos de comunicação com o Hamas? E que chegaria a um acordo com o grupo (cujos detalhes não conhecemos), incluindo a libertação incondicional do soldado de dupla nacionalidade Idan Alexander?
E, então, que prosseguiria com essas comunicações, que poderiam levar a um cessar-fogo em Gaza e à entrada de ajuda humanitária?
A normalização saudita com a entidade sionista pode não acontecer, a princípio, já que os acordos e presentes sem precedentes oferecidos por Trump podem representar o preço para interromper a guerra em Gaza, avançar no reconhecimento do Estado Palestino e caminhar em direção à sua concretização.
Esses acontecimentos e surpresas não afetaram apenas o Oriente Médio, mas o mundo inteiro — do Oriente ao Ocidente. O mais relevante desses desenvolvimentos é o esforço sério para encerrar a guerra russo-ucraniana, pressionando o aliado Zelensky a fazer concessões, especialmente no que diz respeito à cessação de qualquer reivindicação sobre a Península da Crimeia, originalmente pertencente à Rússia.
Outro acontecimento importante foi o abandono do domínio curdo, permitindo que a Turquia encerrasse o conflito de longa data com os curdos, particularmente com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Iraque e Turquia chegaram a um consenso sobre essa questão e am um acordo abrangente em 13 de março de 2025.
É um fato inusitado que Narendra Modi tenha buscado a ajuda de Trump para mediar um cessar-fogo com o primeiro-ministro paquistanês, após a humilhação sofrida no último sábado à noite, durante a batalha aérea decisiva, na qual a Índia perdeu cinco aeronaves, além de locais de lançamento de mísseis e drones, que foram destruídos. De fato, a guerra foi interrompida imediatamente.
Mais importante do que tudo isso é a redução das tensões com a China — ainda que temporariamente. Após o aumento astronômico das tarifas impostas à China, ambos os países recuaram. Delegações se reuniram em Genebra para discutir a possibilidade de controlar os confrontos comerciais e reduzir as tarifas de 126% e 200% sobre automóveis, e de 60% sobre diversas importações, para 10%.
Trump também recuou significativamente de suas posições impetuosas em relação ao México, Canadá, Groenlândia, Panamá e outros países. Ainda assim, devemos permanecer cautelosos: trata-se de um homem que pode mudar de posição num piscar de olhos — sem qualquer hesitação, vergonha ou medo.
Todas essas medidas foram adotadas por Trump antes mesmo de completar seus primeiros quatro meses de mandato. E o que esperar dos próximos 44 meses?
Olhemos os países do Golfo.
A primeira visita de Trump durante seu primeiro mandato foi aos Estados do Golfo, e ele escolheu a mesma região para sua primeira viagem oficial fora dos Estados Unidos. Na ocasião, tratava-se basicamente de uma visita em busca de dinheiro. Ele partiu de Riad para Israel, colocou o solidéu e realizou a visita obrigatória imposta a todos os líderes.
A Arábia Saudita vivia, à época, uma situação delicada: a disputa pelo posto de príncipe herdeiro ainda estava em curso; a prisão de membros ricos da família real também; e a condição das mulheres no país era alvo de duras críticas internacionais. A tensão entre os Estados do Golfo e o Catar estava prestes a explodir, e o xeque Tamim recusou-se a se juntar aos demais países do Golfo na oferta de bilhões a Trump, preferindo negociar diretamente com ele e ignorando o canal saudita.
As tensões entre a Arábia Saudita e o Irã estavam no auge, e as relações sauditas com a China e a Rússia eram instáveis. A guerra no Iêmen, iniciada em 2015 pela Arábia Saudita, havia se estabilizado após a de um cessar-fogo há mais de dois anos, e as negociações entre as partes, mediadas em Omã, avançavam lentamente.
Agora, porém, a situação mudou — e a favor da Arábia Saudita. O país mantém boas relações com o Irã, a China e a Rússia. Juntou-se ao grupo BRICS, superou o episódio do assassinato de Jamal Khashoggi, encerrou o papel da polícia religiosa e garantiu uma série de direitos às mulheres.
O que a Arábia Saudita busca, com o apoio do Catar, é respaldo estadunidense nas áreas de novas energias, inteligência artificial e poder militar. Mais importante ainda: deseja um avanço nas frentes palestina — especialmente diante da guerra de extermínio — e síria, com a suspensão das sanções, para dar ao país uma chance real de recuperação.
Essa é a expectativa de Mohammed bin Salman com a visita de Trump. E, se o preço for uma grande quantia de dinheiro, que seja.
A Síria, por sua vez, permanece no olho do furacão: agitação interna, constantes incursões israelenses, uma economia à beira do colapso e duras sanções que inviabilizam qualquer tentativa de recuperação, mesmo em nível popular. Há ainda um Estado do Golfo, alinhado à entidade sionista, que pressiona a Síria rumo à normalização pública das relações com Israel.
A Turquia — o país mais influente na Síria e o mais envolvido nos assuntos sírios desde 2011 — deseja que Damasco siga o modelo turco e celebre acordos amplos com Ancara, abrangendo economia, segurança e energia. O Catar apoia essa tendência, sem impor a normalização como condição.
Entre esses dois eixos está a Arábia Saudita. Não é surpresa, portanto, que a primeira visita de Shara fora da Síria tenha sido justamente à Arábia Saudita, que aparentemente assumiu a responsabilidade de apoiar o país e afastá-lo ainda mais do eixo iraniano.
Com o novo acordo firmado com Trump, a liderança síria alinhou sua posição à da Arábia Saudita na questão da normalização. Acredita-se que o regime sírio não normalizará suas relações com Israel a menos que a Arábia Saudita lidere as fileiras dos novos normalizadores.
A normalização saudita com a entidade sionista pode não ocorrer no início do processo, mas sim ao final. Em troca de acordos simbólicos e presentes sem precedentes oferecidos pelos Estados do Golfo a Trump, esse poderia ser o preço para interromper a guerra em Gaza, avançar rumo ao reconhecimento de um Estado palestino e possibilitar sua concretização.
Isso explicaria a raiva de Netanyahu — especialmente após o anúncio oficial de que estavam em andamento negociações entre os Estados Unidos e o Hamas.
Esse cenário é definitivo?
Claro que não.
Mas é a porta de entrada para o Prêmio Nobel da Paz, que ocupa parte dos pensamentos de Trump. Certamente, o portão duplo para esse prêmio está localizado em Kyev e Gaza. Se ele conseguir deter a devastação humanitária sem precedentes em Gaza e pôr fim à guerra russo-ucraniana — talvez com a ajuda de Erdogan —, Trump, sem dúvida, coroará sua carreira diplomática com o prêmio.
Não confiamos em Trump, mas o consideramos capaz de tomar decisões corajosas, imediatas e inesperadas, que o glorificam pessoalmente, esteja ele irritado ou satisfeito. No entanto, tememos que Halima “volte aos seus velhos hábitos” depois de deixar a região do Golfo — e que ele retorne ao seu amor eterno pela entidade sionista, após já ter saqueado o dinheiro dos árabes.
Veremos em que direção ele seguirá: será um parceiro no genocídio, como seu antecessor imprudente, Biden? Ou projetará um novo Oriente Médio baseado na paz, prosperidade e cooperação, encerrando o ciclo de matança em massa, destruição e apartheid?
Os próximos dias revelarão o que ainda não sabemos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: