Esperidião Amim e o golpe de morte nas terras indígenas
O genocídio indígena no Brasil nunca foi apenas físico
A fúria da bancada ruralista, que explodiu em setembro de 2023 com a derrubada do marco temporal pelo STF, renasce agora no Senado travestida de projeto legislativo. O PDL 717/2024, aprovado com eficiência sinistra em menos de 24 horas pela CCJ e plenário, não é mera revisão processual. É o desmonte consciente dos direitos territoriais indígenas, vestido com a velha retórica da segurança jurídica. Enquanto o ministro Gilmar Mendes suspende comissões conciliatórias no STF e André Mendonça é invocado para validar o inválido, o Congresso avança como trator sobre terras tradicionalmente ocupadas. Esperidião Amin (PP-SC), autor do projeto, transformou-se no operador de uma engrenagem que promete aniquilar décadas de conquistas indígenas com a frieza de um típico burocrata de fala mansa.
O cerne da operação reside na sustação do Artigo 2º do Decreto 1.775/1996, que funciona como a espinha dorsal do processo demarcatório. Este artigo detalha cada o: dos estudos antropológicos preliminares à participação comunitária obrigatória, dos prazos para contestações até a homologação final. Sua revogação criaria um vácuo normativo insidioso. Como demarcar sem um rito definido? Como comprovar ocupação tradicional sem diretrizes técnicas? Como garantir direitos sem procedimentos? O senador Amin justifica a manobra com uma argumentação circular digna de Kafka: ele diz que o decreto colide com a Lei 14.701/2023, referindo-se à lei do marco temporal. Convenientemente, omite dois fatos irrefutáveis: primeiro, que o STF já declarara a constitucionalidade do decreto em 2009 no julgamento da Petição 3.388/RR da TI Raposa Serra do Sol; segundo, que a própria Lei 14.701 está sob suspeição no Supremo por colidir frontalmente com o Tema 1.031, que enterrou o marco temporal em 2023.
A estratégia é cristalina: sufocar por asfixia procedimental. Sem regras claras, as 134 terras em estudo pela Funai e as 490 reivindicações fundiárias pendentes mergulhariam no limbo jurídico. O suposto “contraditório amplo” que o PDL promove não a de cortina de fumaça para entregar territórios a grileiros. Vejam o caso emblemático das terras Toldo Imbu, do povo Kaingang, e Morro dos Cavalos, dos Guarani Mbya, homologadas após décadas de luta e agora no centro do furacão. Sob a alegação cínica de falta de comprovação de ocupação em 1988, ignora-se que expulsões violentas — como as sofridas pelos Xokleng em Santa Catarina, documentadas até pela Comissão Nacional da Verdade — tornam essa comprovação uma impossibilidade perversa. Como exigir renitente esbulho (conflito físico na data da promulgação da Constituição) de povos que foram expulsos antes mesmo de terem direitos civis reconhecidos? A exigência transforma-se em uma cruel armadilha jurídica: prova-se a resistência apenas quando há corpo para resistir, e muitos já haviam sido varridos do mapa pelo avanço da colonização predatória.
Esperidião Amin personifica a hipocrisia do agronegócio brasileiro com uma maestria que beira o patético. Seu discurso repete o mantra ruralista da segurança jurídica para produtores, mas cala-se sobre como seu projeto institucionaliza o caos. Enquanto defende proprietários do município de Abelardo Luz, onde os Kaingang não estariam desde 1949 segundo sua narrativa, omite que a região foi palco de remoções forçadas durante o governo Vargas, quando o SPI (Serviço de Proteção aos Índios) praticava o que hoje chamaríamos de limpeza étnica. Sérgio Moro deu aval jurídico à operação com um voto em separado pela constitucionalidade do PDL em sua integridade, ignorando deliberadamente a jurisprudência do STF, num paradoxo grotesco: o mesmo homem que discursava cinicamente pelo combate à insegurança jurídica agora, na política, a fábrica em escala industrial sem nenhum disfarce. Nenhuma surpresa para quem é contumaz sabotador da vontade popular e de processo jurídico.
Os Kaingang e Guarani Mbya, citados nominalmente como alvos no texto do PDL, não são abstrações legislativas. São comunidades que enfrentam o risco concreto de despejo em áreas onde reconstruíram suas vidas após séculos de violência. Eunice Kerexu, coordenadora do Dsei Interior Sul, já alertara em audiência pública: comunidades como as do Morro dos Cavalos são vítimas de narrativas distorcidas que colocam a população contra os povos indígenas. A região, que abriga cemitérios sagrados e áreas de cultivo tradicional, é retratada como invasão recente, apesar de laudos antropológicos da UFSC comprovarem presença contínua desde pelo menos o século XIX. O que ocorre ali é epistemicídio: a ciência que incomoda é descartada como ideológica, enquanto o discurso do agronegócio vira verdade oficial.
Os ruralistas vendem o PDL como instrumento pacificador, mas os números desmascaram a farsa. O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana no Caso Xukuru (2018) por demorar 16 anos para demarcar terras enquanto invasores as devastavam impunemente. Joenia Wapichana, presidenta da Funai, é taxativa: O que causa insegurança jurídica é não regularizar terras indígenas. Seu aviso soa como profecia, pois vem de quem vive essa realidade: onde há terras não demarcadas, há pistoleiros, madeireiros ilegais e disputas sangrentas.
O PDL 717 agrava esse cenário de três formas letais. Primeiro, ao criar um vácuo processual que inviabiliza novas demarcações. Sem regras, a Funai paralisa. Segundo, ao reabrir terras já homologadas, como Toldo Imbu e Morro dos Cavalos, o que serve de sinal verde para novas invasões. Terceiro, ao sobrepujar o STF — cuja comissão de conciliação foi suspensa por Gilmar Mendes em fevereiro para avaliação, justamente quando o Congresso age a toque de caixa. A própria comissão de conciliação era uma farsa. Os próprios indígenas se retiraram dela. Não por acaso, o ministro frisara que métodos autocompositivos são urgentes para evitar decisões conflitantes. O Congresso, porém, escolheu o conflito. Prefere a navalha da sustação ao diálogo.
O PDL 717 tenta erigir um império de ilegalidade sobre as ruínas dos direitos indígenas. Qual é a ironia trágica? As terras indígenas são os últimos cinturões de proteção ambiental em regiões devastadas. São ilhas de preservação em oceanos de degradação. O que Amin, Moro e até mesmo a base de apoio do governo nos oferecem é um Brasil onde a grilagem vira política de Estado, laudos antropológicos viram papel picado, e o decreto 1.775/1996, construído com décadas de diálogo, é rasgado para saciar o apetite do agronegócio predatório.
Quando os Kaingang foram expulsos de Toldo Imbu — onde resistem bravamente desde 1949, segundo registros do próprio SPI —, chamarão de progresso. Quando o Cerrado arder em terras não demarcadas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, dirão ser acidente. Quando o STF for reduzido a mero espectador, falarão em autonomia dos Poderes. Este PDL não é apenas um projeto de lei. É um projeto de nação com cheiro de cinzas e sangue.
O genocídio indígena no Brasil nunca foi apenas físico. Foi sempre também istrativo, jurídico, legislativo. O PDL 717/2024 é sua expressão mais sofisticada: mata sem disparar um tiro, expulsa sem ordem judicial, aniquila com canetas e votos apressados. Resta saber se o Supremo, com ministros como Mendonça, Nunes Marques e Gilmar, permitirá que a Constituição seja esquartejada em plenário. Ou se lembrará que, nas palavras do jurista uruguaio Eduardo Couture “Nosso dever é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrarmos o Direito em conflito com a Justiça, lutemos pela Justiça”.
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