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      Gustavo Guerreiro

      Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

      8 artigos

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      Esperidião Amim e o golpe de morte nas terras indígenas

      O genocídio indígena no Brasil nunca foi apenas físico

      Esperidião Amin (Foto: Divulgação (Senado))

      A fúria da bancada ruralista, que explodiu em setembro de 2023 com a derrubada do marco temporal pelo STF, renasce agora no Senado travestida de projeto legislativo. O PDL 717/2024, aprovado com eficiência sinistra em menos de 24 horas pela CCJ e plenário, não é mera revisão processual. É o desmonte consciente dos direitos territoriais indígenas, vestido com a velha retórica da segurança jurídica. Enquanto o ministro Gilmar Mendes suspende comissões conciliatórias no STF e André Mendonça é invocado para validar o inválido, o Congresso avança como trator sobre terras tradicionalmente ocupadas. Esperidião Amin (PP-SC), autor do projeto, transformou-se no operador de uma engrenagem que promete aniquilar décadas de conquistas indígenas com a frieza de um típico burocrata de fala mansa.

      O cerne da operação reside na sustação do Artigo 2º do Decreto 1.775/1996, que funciona como a espinha dorsal do processo demarcatório. Este artigo detalha cada o: dos estudos antropológicos preliminares à participação comunitária obrigatória, dos prazos para contestações até a homologação final. Sua revogação criaria um vácuo normativo insidioso. Como demarcar sem um rito definido? Como comprovar ocupação tradicional sem diretrizes técnicas? Como garantir direitos sem procedimentos? O senador Amin justifica a manobra com uma argumentação circular digna de Kafka: ele diz que o decreto colide com a Lei 14.701/2023, referindo-se à lei do marco temporal. Convenientemente, omite dois fatos irrefutáveis: primeiro, que o STF já declarara a constitucionalidade do decreto em 2009 no julgamento da Petição 3.388/RR da TI Raposa Serra do Sol; segundo, que a própria Lei 14.701 está sob suspeição no Supremo por colidir frontalmente com o Tema 1.031, que enterrou o marco temporal em 2023.

      A estratégia é cristalina: sufocar por asfixia procedimental. Sem regras claras, as 134 terras em estudo pela Funai e as 490 reivindicações fundiárias pendentes mergulhariam no limbo jurídico. O suposto “contraditório amplo” que o PDL promove não a de cortina de fumaça para entregar territórios a grileiros. Vejam o caso emblemático das terras Toldo Imbu, do povo Kaingang, e Morro dos Cavalos, dos Guarani Mbya, homologadas após décadas de luta e agora no centro do furacão. Sob a alegação cínica de falta de comprovação de ocupação em 1988, ignora-se que expulsões violentas — como as sofridas pelos Xokleng em Santa Catarina, documentadas até pela Comissão Nacional da Verdade — tornam essa comprovação uma impossibilidade perversa. Como exigir renitente esbulho (conflito físico na data da promulgação da Constituição) de povos que foram expulsos antes mesmo de terem direitos civis reconhecidos? A exigência transforma-se em uma cruel armadilha jurídica: prova-se a resistência apenas quando há corpo para resistir, e muitos já haviam sido varridos do mapa pelo avanço da colonização predatória.

      Esperidião Amin personifica a hipocrisia do agronegócio brasileiro com uma maestria que beira o patético. Seu discurso repete o mantra ruralista da segurança jurídica para produtores, mas cala-se sobre como seu projeto institucionaliza o caos. Enquanto defende proprietários do município de Abelardo Luz, onde os Kaingang não estariam desde 1949 segundo sua narrativa, omite que a região foi palco de remoções forçadas durante o governo Vargas, quando o SPI (Serviço de Proteção aos Índios) praticava o que hoje chamaríamos de limpeza étnica. Sérgio Moro deu aval jurídico à operação com um voto em separado pela constitucionalidade do PDL em sua integridade, ignorando deliberadamente a jurisprudência do STF, num paradoxo grotesco: o mesmo homem que discursava cinicamente pelo combate à insegurança jurídica agora, na política, a fábrica em escala industrial sem nenhum disfarce. Nenhuma surpresa para quem é contumaz sabotador da vontade popular e de processo jurídico.

      Os Kaingang e Guarani Mbya, citados nominalmente como alvos no texto do PDL, não são abstrações legislativas. São comunidades que enfrentam o risco concreto de despejo em áreas onde reconstruíram suas vidas após séculos de violência. Eunice Kerexu, coordenadora do Dsei Interior Sul, já alertara em audiência pública: comunidades como as do Morro dos Cavalos são vítimas de narrativas distorcidas que colocam a população contra os povos indígenas. A região, que abriga cemitérios sagrados e áreas de cultivo tradicional, é retratada como invasão recente, apesar de laudos antropológicos da UFSC comprovarem presença contínua desde pelo menos o século XIX. O que ocorre ali é epistemicídio: a ciência que incomoda é descartada como ideológica, enquanto o discurso do agronegócio vira verdade oficial.

      Os ruralistas vendem o PDL como instrumento pacificador, mas os números desmascaram a farsa. O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana no Caso Xukuru (2018) por demorar 16 anos para demarcar terras enquanto invasores as devastavam impunemente. Joenia Wapichana, presidenta da Funai, é taxativa: O que causa insegurança jurídica é não regularizar terras indígenas. Seu aviso soa como profecia, pois vem de quem vive essa realidade: onde há terras não demarcadas, há pistoleiros, madeireiros ilegais e disputas sangrentas.

      O PDL 717 agrava esse cenário de três formas letais. Primeiro, ao criar um vácuo processual que inviabiliza novas demarcações. Sem regras, a Funai paralisa. Segundo, ao reabrir terras já homologadas, como Toldo Imbu e Morro dos Cavalos, o que serve de sinal verde para novas invasões. Terceiro, ao sobrepujar o STF — cuja comissão de conciliação foi suspensa por Gilmar Mendes em fevereiro para avaliação, justamente quando o Congresso age a toque de caixa. A própria comissão de conciliação era uma farsa. Os próprios indígenas se retiraram dela. Não por acaso, o ministro frisara que métodos autocompositivos são urgentes para evitar decisões conflitantes. O Congresso, porém, escolheu o conflito. Prefere a navalha da sustação ao diálogo.

      O PDL 717 tenta erigir um império de ilegalidade sobre as ruínas dos direitos indígenas. Qual é a ironia trágica? As terras indígenas são os últimos cinturões de proteção ambiental em regiões devastadas. São ilhas de preservação em oceanos de degradação. O que Amin, Moro e até mesmo a base de apoio do governo nos oferecem é um Brasil onde a grilagem vira política de Estado, laudos antropológicos viram papel picado, e o decreto 1.775/1996, construído com décadas de diálogo, é rasgado para saciar o apetite do agronegócio predatório.

      Quando os Kaingang foram expulsos de Toldo Imbu — onde resistem bravamente desde 1949, segundo registros do próprio SPI —, chamarão de progresso. Quando o Cerrado arder em terras não demarcadas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, dirão ser acidente. Quando o STF for reduzido a mero espectador, falarão em autonomia dos Poderes. Este PDL não é apenas um projeto de lei. É um projeto de nação com cheiro de cinzas e sangue.

      O genocídio indígena no Brasil nunca foi apenas físico. Foi sempre também istrativo, jurídico, legislativo. O PDL 717/2024 é sua expressão mais sofisticada: mata sem disparar um tiro, expulsa sem ordem judicial, aniquila com canetas e votos apressados. Resta saber se o Supremo, com ministros como Mendonça, Nunes Marques e Gilmar, permitirá que a Constituição seja esquartejada em plenário. Ou se lembrará que, nas palavras do jurista uruguaio Eduardo Couture “Nosso dever é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrarmos o Direito em conflito com a Justiça, lutemos pela Justiça”.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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