Escola democrática sob ataque: o avanço da lógica militar no ensino público
Em 2025, a educação pública brasileira volta a ser ameaçada por uma velha fórmula autoritária disfarçada de modernidade: a expansão das escolas cívico-militares
O atual governador do Estado de São Paulo anunciou a criação de mais 100 unidades desse modelo. Policiais militares da reserva, sem formação pedagógica, assumem funções na gestão escolar, impondo normas disciplinares que transformam o ambiente educacional em um espaço de vigilância, no qual a autonomia docente é suprimida por regras autoritárias. É preciso destacar este ponto: agentes de uma corporação historicamente envolvida em episódios controversos relacionados a direitos humanos assumirão o papel de “orientadores morais e políticos” de jovens estudantes.
A medida, além de desconsiderar evidências já apontadas por pesquisas educacionais — que revelam a ineficácia dessa abordagem —, representa um perigoso o rumo à militarização da sociedade e à conformação ideológica da juventude. Sob a justificativa de promover “disciplina” e “valores éticos”, as escolas cívico-militares utilizam uma retórica simplista para mascarar seu verdadeiro propósito: moldar subjetividades submissas, obedientes e alinhadas a um projeto político autoritário. Embora o Plano Nacional de Educação (PNE) defenda a educação integral como meio de ampliar oportunidades educacionais, o modelo cívico-militar a deturpa, substituindo a formação crítica por uma lógica de obediência hierárquica.
Essa iniciativa não é um fenômeno isolado, mas ecoa projetos históricos, como o do integralismo brasileiro dos anos 1930. Inspirado em ideologias fascistas europeias, o movimento integralista, liderado por Plínio Salgado, defendia uma educação rigidamente hierarquizada e moralizante, com forte ênfase na disciplina, no nacionalismo e na obediência à autoridade. A proposta educacional integralista visava formar um "novo cidadão", subordinado ao Estado e aos valores tradicionais, apagando a diversidade de pensamento e reprimindo qualquer crítica ao regime O projeto educacional integralista, longe de promover qualquer forma de emancipação social, tinha como finalidade a formação de um "exército de reserva" — uma massa trabalhadora disciplinada e tecnicamente treinada para ocupar funções subordinadas dentro das engrenagens econômicas e militares do Estado. Embora concebido fundamentalmente como um mecanismo de conformação ideológica e moral, esse modelo previa, ainda que parcialmente, a capacitação técnica dos trabalhadores, não com vistas à mobilidade social, mas como instrumento de eficiência e controle. Em contraste, a proposta atualmente implementada no estado de São Paulo carece de fundamentos pedagógicos sólidos e se apresenta menos como uma política educacional propriamente dita e mais como um gesto de alinhamento político e agrado do governador a setores conservadores que compõem sua base de apoio. Trata-se, portanto, de um projeto que, sob o pretexto de disciplinar e ordenar, aproxima-se perigosamente de um modelo de adestramento simbólico das mentes jovens escolares.
Essa iniciativa não é ingênua. Trata-se de uma estratégia deliberada de ocupação do espaço escolar por agentes cuja função não é educar, mas disciplinar e vigiar. O ambiente que deveria estimular a autonomia intelectual, a liberdade crítica e o pensamento emancipador é transformado em um espaço de controle, moralismo e silenciamento.
Enquanto isso, o debate sobre a legalidade desse modelo chegou ao Supremo Tribunal Federal. A análise da constitucionalidade das escolas cívico-militares no STF reflete o conflito entre a autonomia dos estados e os princípios educacionais nacionais, como a gestão democrática prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996). Recentemente, o ministro Flávio Dino pediu vista e interrompeu o julgamento de uma ação contra o modelo em São Paulo. Até o momento da suspensão, o placar estava em 3 a 0 para derrubar a decisão da Justiça paulista que havia paralisado o programa. O relator, ministro Gilmar Mendes, foi acompanhado por Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin, numa sinalização preocupante de que, no mais alto tribunal do país, a tendência é validar a entrega da istração escolar à lógica militar. Dino tem agora até 90 dias para devolver o processo ao plenário virtual. O desfecho poderá indicar se o STF atuará como um freio democrático ou como legitimador da militarização do ensino público.
A educação pública, sobretudo nas periferias, converte-se em laboratório de um projeto de poder que, embora derrotado nas urnas nas últimas eleições presidenciais, permanece ativo nas estruturas institucionais. A proposta das escolas cívico-militares não dialoga com educadores, pesquisadores ou com a comunidade escolar de forma plena. Ao contrário, avança de maneira vertical, imposta por interesses políticos que desconsideram os princípios democráticos da gestão educacional. O Ministério da Educação, ao encerrar o programa federal de escolas cívico-militares no início da atual gestão, agiu com coerência ao reconhecer o desvio de finalidade imposto às Forças Armadas e às polícias. Entretanto, a persistência desse modelo nos estados governados por forças conservadoras exige vigilância e mobilização por parte da sociedade civil e das forças progressistas.
É urgente que os setores progressistas assumam o protagonismo na defesa de uma escola pública, laica, democrática e inclusiva, resgatando projetos como os centros educacionais dos anos 1980, que uniam educação em tempo integral à participação comunitária — provando que outra escola pública é possível. A naturalização da presença de militares em espaços escolares — ainda que aposentados e desarmados — representa não apenas a erosão de valores republicanos, mas também um grave retrocesso na formação cidadã das novas gerações. Trata-se de uma questão que ultraa os limites da política educacional: é uma trincheira essencial na defesa da democracia.
Apesar de ter havido a recomendação pela Comissão Nacional da Verdade da necessidade de reformas nos currículos das instituições militares, estas não foram levadas a cabo. A Comissão recomendou a modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais para promover a democracia e os direitos humanos, suprimindo qualquer referência à doutrina de segurança nacional. No entanto, essa recomendação permanece majoritariamente ignorada, e os currículos continuam a refletir valores autoritários herdados do período da ditadura militar.
Os policiais militares reformados da PM paulista que estão sendo convocados para ocupar cargos de professores nas escolas cívico-militares trazem em sua formação a marca da ditadura militar de 1964. A Polícia Militar, como instituição, foi moldada durante o regime autoritário, com ênfase na repressão política e na manutenção da ordem pública sob uma lógica de combate ao "inimigo interno". Essa herança autoritária ainda permeia a cultura institucional da PM, influenciando a formação e atuação de seus membros, mesmo após a redemocratização.
Portanto, a inserção desses profissionais no ambiente escolar, sem a devida reformulação de sua formação e sem uma abordagem pedagógica alinhada aos princípios democráticos, representa um risco à construção de uma educação pública que promova a cidadania crítica e a pluralidade de pensamento.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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