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      Sara Goes

      Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

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      Entre o Cariri e o Vaticano: o povo vai canonizar Roma

      Entre a morte do Papa Francisco e a canonização de Padre Cícero, o sertão subiu ao altar e Roma, enfim, reconhece a fé política e insubmissa do Cariri

      (Foto: Imagem feita por IA)

      - Foi preciso que morresse o último Papa da periferia para que a Santa Sé, enfim, olhasse para o Cariri com os olhos da eternidade. No mesmo fôlego com que a fumaça branca do incenso despediu Francisco de Roma, uma fumaça nordestina, de candeeiro e promessa subiu do Juazeiro para o céu: Padre Cícero Romão Batista foi canonizado.

      Francisco e Cícero. Um argentino e um cearense. Um vindo do subúrbio de Buenos Aires, outro nascido no chão do sertão do Crato. Um jesuíta que desafiou a Cúria Romana e os banqueiros do mundo; outro, um padre sertanejo que desafiou o Vaticano e os coronéis do Ceará. Ambos, de modos distintos, enfrentaram o mesmo império: o da moral branca, eurocêntrica, centralizadora e colonial.

      Padre Cícero foi interditado, excomungado, silenciado. Acusado de milagreiro, embusteiro, herege. Tudo porque ousou dizer que o povo pobre tinha alma, fé e direito ao sagrado. Porque acolheu beatas que sangravam hóstias e lavadeiras que viravam profetisas. Porque fundou uma cidade, Juazeiro do Norte, baseada na crença de que o sertão era terra santa. Porque fundou, antes mesmo que se usasse esse termo, um território livre de espiritualidade popular, resistência camponesa e cultura do cuidado.

      Mas que não se engane quem busca em Cícero uma figura plana, domesticável, encaixável nos moldes da santidade liberal da esquerda universitária. Cícero fazia política. Era um líder pragmático. Foi vice-governador do Ceará, articulou com oligarquias, fez alianças contraditórias, ergueu um poder paralelo no sertão. Tinha beatos e jagunços. Unia devoção popular e estratégia. Era complexo e por isso, profundamente verdadeiro.

      Sua santidade não cabe nas estantes éticas da moralidade progressista sudestina, que insiste em buscar pureza em figuras que viveram cercadas de lama, suor e contradição. O povo que o canonizou há mais de cem anos não buscava um santo imaculado, buscava um santo encarnado, capaz de entender o sertão não como metáfora, mas como carne, como fronteira, como país.

      O Vaticano, claro, não perdoou. Mandou visitas apostólicas, interditou suas falas, cortou sua voz. Mas os romeiros continuaram vindo. Milhões. Por mais de cem anos. Com chapéu de palha, pés rachados e fé no juízo. Porque Cícero não era só um padre. Era um símbolo da autodeclaração dos pobres como dignos de serem ouvidos.

      A Igreja o renegou. O povo o canonizou.

      Agora a instituição finalmente se curva. Justo sob o luto de Francisco, o Papa que tentou devolver a Teologia da Libertação às missas, que falou de Laudato si' em pleno G20, que se ajoelhou diante de migrantes e indígenas. Francisco, que segurou o mundo por um fio de esperança num tempo de muros e cercas. Francisco, que talvez tenha negociado em silêncio a redenção de Cícero, e pago com sua saúde, sua solidão e agora sua morte, o preço por essa paz tardia entre Roma e o Juazeiro.

      A canonização de Padre Cícero, nesse contexto, é mais do que um gesto religioso. É um aceno político. É Roma reconhecendo, com séculos de atraso, que o sul tem voz, fé e memória própria. É o cristianismo voltando a se encontrar com as comunidades de base, com o barro dos terreiros, com os santos de chinelo e a mística do povo.

      É a consagração de um projeto sul-sul de fé e soberania.

      Um projeto em que a espiritualidade não serve para justificar a ordem, mas para subvertê-la.

      Em que a cruz é carregada por romeiros que constroem a cidade e não pelos donos do latifúndio.

      Em que a santidade é reconhecida no cuidado com o outro, no acolhimento das beatas, na luta pela terra, e não no silêncio cúmplice diante das injustiças.

      E é nesse mesmo chão de resistência que floresce a memória de Menina Benigna, a mártir de Santana do Cariri, santa dos simples, morta por tentar defender sua dignidade. Ela, que foi beatificada por sua coragem e pureza, torna-se símbolo da luta contra o feminicídio no Ceará e da força da juventude sertaneja. É a santidade que brota do sofrimento, mas também da insubmissão.

      Francisco partiu. Cícero foi elevado. Benigna ressurge como luz entre meninas em um estado que as mata diariamente. Mas quem sobe, mesmo, é o povo. É a beata Maria de Araújo, antes calada, agora beatificada no coração das romarias. É o sertanejo que virou santo. É o Cariri que virou Vaticano.

       E a pergunta que fica na garganta da América Latina é: o que faremos com essa fresta aberta no céu?

       Se até Roma reconhece, quem somos nós para duvidar que o sertão vai virar o mundo vai virar sertão.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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