Entre alentos e desesperanças
"O povo brasileiro não merece conviver com a ideia de que em seu país compensa cometer crimes contra o Estado de Direito"
Em tempos efervescentes e opostos em propósitos, enquanto avançam forças extremistas de direita em nuances fascistas pelo mundo, enquanto Trump marcha para um regime de governo ditatorial, enquanto assistimos a dizimação de crianças, mulheres e homens que agonizam na Faixa de Gaza e nos demais conflitos bélicos que se espalham pelos continentes pela triste insensatez humana, acontece a escolha do sucessor do Papa dos excluídos, dos discriminados, o cristão do acolhimento e do respeito à diversidade, Papa Francisco. Após dois dias de intenso Conclave, o americano Robert Prevost, agostiniano, falou aos povos do mundo, como o novo Papa.
Leão XIV terá uma responsabilidade desmedida na condução da Igreja, a fim de que não fruste as expectativas de continuidade dos avanços civilizatórios e humanitários construídos pelo seu antecessor, que marcaram a história do catolicismo contemporâneo. Todavia, por mais que tentemos prever os destinos da igreja que abriga o maior número de seguidores no mundo, somente a prática do pontificado de Leão XIV demonstrará a que ele veio. Como Karl Marx referiu, “a prática é o critério da verdade”.
Em meio a essa materialidade do mundo, ora alentadora, ora de desesperança, formada por múltiplas contradições, recentemente nos deparamos com uma tentativa criminosa contra a multidão de fãs presente ao show de Lady Gaga, no Rio de Janeiro. O ataque frustrado foi planejado por uma turba intolerante à diversidade humana, coordenada por aliciadores digitais que costumam atuar, anonimamente, nas redes sociais.
Contudo, a história tem demonstrado que não há necessidade de espaços online para seres desumanos planejarem suas delinquências.
Durante o regime militar tornou-se comum o exercício de práticas de extermínio de pessoas contrárias à ditadura. Por muito pouco, não ocorreram milhares de mortes, durante um show de música popular brasileira no centro de eventos do Riocentro, em 30 de abril de 1981, em que um sargento e um capitão do exército, por ordem de membros do DOI-CODI e de militares inconformados com os movimentos de redemocratização, tentaram explodir bombas no evento, com o objetivo de incriminar os movimentos de esquerda e, desse modo, justificar o endurecimento do regime enfraquecido pelas manifestações graduais de abertura política. O espetáculo reuniu 20 mil pessoas, que talvez não voltassem pra casa com vida, se a ação tivesse logrado êxito.
No caso do show pop de sábado ado, se o plano terrorista não fosse barrado a tempo pelos órgãos de inteligência da segurança pública, o pavor teria se instalado com graves consequências entre os milhões de fãs. A simples presença ao show de Lady Gaga, em busca de emoção, de culto à cantora, poderia ter se transformado numa tragédia.
Com base nessa realidade, é urgente a regulação das redes sociais diante da formação de organizações criminosas, ou de ações de pessoas protegidas pelo anonimato do espaço virtual, os chamados lobos solitários, que se valem da fragilidade de determinados usuários para disseminar conteúdos de ódio ou causar-lhes danos graves, inclusive contra a vida.
Situações como da turba invasora da sede dos três poderes, dos psicopatas que atacam públicos em shows, dos disseminadores de mentiras, se criam, quando abrigadas pela impunidade.
Nesse horizonte grotesco e assustador, enquanto os artífices de atos ilegais não sofrerem consequências proporcionais aos delitos cometidos, enquanto as vozes da direita fascista e da direita oportunista do congresso arquitetarem propostas vergonhosas de anistia a criminosos, ou aprovar em plenário, mediante 315 votos a 143 e 4 abstenções, a Resolução 18/25 para suspender a ação penal em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o golpe ao Estado de Direito, em que o deputado Alexandre Ramagem figura como réu, a democracia do país estará correndo risco.
No entanto, entre alentos e desesperanças, a Suprema Corte Constitucional tem proporcionado alentos aos brasileiros, pelo fiel cumprimento de seu papel como guardiã da Constituição da República. Apesar do atrevimento da Câmara Federal ter preparado, em tempo recorde, mais uma investida contra o STF, em 09/05/2025, o Ministro Relator da Ação Penal (AP) 2668, Alexandre de Moraes, em seu voto, foi a favor da suspensão do processo contra Ramagem somente pelos crimes de dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima (art. 163, parágrafo único, I, III e IV, do Código Penal), e deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da L ei 9.605/98).
Convém salientar que a referida resolução tinha a intenção velada de alcançar os demais réus do núcleo um, inclusive o ex-presidente Bolsonaro. Intenção absolutamente fora de propósito legal. Sobre essa desfaçatez, o Ministro Alexandre de Moraes, referiu em seu voto: “Os requisitos do caráter personalíssimo (imunidade parlamentar) e temporal (crimes praticados após a diplomação), previstos no texto constitucional, são claros e expressos, no sentido da impossibilidade de aplicação dessa imunidade a corréus não parlamentares e a infrações penais praticadas antes da diplomação”.
A partir do voto do relator, os demais Ministros da 1ª Turma: Cristiano Zanin, Fux e Flávio Dino acompanharam o relator. Portanto, Ramagem continuará a responder por abolição violenta do Estado democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e associação criminosa armada. Falta somente voto da Ministra Carmen Lúcia.
Acerca do voto do Ministro Dino, vale destacar o seu recado ao legislativo: “Somente em tiranias um ramo estatal pode concentrar em suas mãos o poder de aprovar leis, elaborar o orçamento e executá-lo diretamente, efetuar julgamentos de índole criminal ou paralisá-los arbitrariamente – tudo isso supostamente sem nenhum tipo de controle jurídico”.
Em face de tudo isso, é necessário ressaltar que um país que se acostumou a não punir os autores de Golpes de Estado, que conviveu com os torturadores e assassinos, como Coronel Brilhante Ustra, Generais Castelo Branco, Médice, Geisel, Figueiredo, entre outros personagens infames, homenageados e reverenciados, por longo tempo, pelas forças armadas e elite reacionária, corre o risco de sofrer a reincidência de atos de mesma natureza, como os do recente golpe à democracia em 2022-2023. O povo brasileiro não merece conviver com a ideia de que em seu país compensa cometer crimes contra o Estado de Direito.
Por fim, saliento mais um trecho memorável do voto do Ministro Flávio Dino com relação à Resolução 18/25: “maiorias ocasionais podem muito em um sistema democrático, mas certamente não podem dilacerar o coração do regime constitucional”. Desta vez, a tentativa de golpe teve a autoria de 315 deputados federais. Todavia, foi barrado mais uma vez pela justiça, pois como nos ensina o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello:
“O legislador não pode tudo, ele está submetido à Constituição”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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