Críticas à fala de Janja na China obscurecem debate complexo e urgente sobre regulação das plataformas digitais no Brasil
Reações editoriais ignoram riscos do capitalismo de dados e revelam desconforto com agenda brasileira de soberania digital
A visita oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China gerou repercussão significativa na imprensa brasileira, especialmente após Janja, primeira-dama, ter abordado o presidente Xi Jinping sobre os efeitos negativos do TikTok no Brasil.
Durante jantar em Pequim entre os líderes, Lula levantou a questão da regulação das plataformas digitais, mencionando preocupações com conteúdos perigosos voltados a crianças e adolescentes, e pediu a Xi o envio de um representante chinês para aprofundar o tema em cooperação com o governo brasileiro.
A intervenção de Janja, ao detalhar o caso da menina Sarah Raíssa Pereira — vítima de um “desafio do desodorante” viralizado na rede social — foi recebida com atenção por Xi, que reconheceu o direito do Brasil de regulamentar a plataforma, inclusive mencionando que o país poderia bani-la, caso considerasse necessário. Apesar da cordialidade no encontro, jornais brasileiros destacaram a fala como inapropriada, gerando editoriais críticos neste fim de semana.
O jornal O Globo afirmou que a China seria o “pior exemplo” a ser seguido em regulação digital, rotulando a manifestação de Janja como “inoportuna” e sugerindo que o governo buscava inspiração em uma ditadura. A Folha de S.Paulo foi além, insinuando que o objetivo da regulação seria censurar as redes por conveniência política, sugerindo que o PT apenas se incomodava com o TikTok porque seus adversários obtêm mais sucesso na plataforma. Já o Estadão acusou Lula de "instrumentalizar" a visita para se aproximar ideologicamente da China, alegando que o presidente teria ignorado a tradição diplomática brasileira de neutralidade geopolítica.
Em contraste com esse tom alarmista da imprensa, o governo brasileiro e o próprio TikTok adotaram posturas conciliatórias. Lula negou qualquer constrangimento durante o jantar e criticou os vazamentos internos à imprensa. Afirmou que a conversa com Xi foi normal e que Janja apenas reforçou pontos que ele já havia levantado. A primeira-dama, por sua vez, defendeu sua participação, reiterando que “não há protocolo que me faça calar” quando o tema envolve proteção de crianças.
O TikTok, por meio de sua controladora ByteDance, enviou carta ao Itamaraty manifestando interesse em dialogar com o governo brasileiro. A plataforma se disse disposta a cooperar com medidas que mitiguem os danos provocados por conteúdos nocivos. Em paralelo, a China anunciou a isenção de vistos para brasileiros, gesto interpretado como um sinal positivo de relações diplomáticas estáveis, mesmo após o episódio.
Apesar disso, a mídia tradicional insistiu em retratar o diálogo como uma tentativa de importar "censura" chinesa. Essa abordagem revelou uma visão simplificada sobre o funcionamento da governança digital na China.
O país de fato restringe a liberdade de expressão e ao contraditório em diversas instâncias de seu poder. Porém, em termos de defesa dos dados digitais de sua população, exerce controle rigoroso e justo sobre plataformas estrangeiras, exigindo que cumpram leis locais para operar.
Google, Facebook, YouTube e Twitter não funcionam plenamente no território chinês por recusarem regras como armazenamento local de dados e filtragem de conteúdo. Pontos que limitam a capacidade de outras nações influenciarem em discussões nacionais pela manipulação de algorítmos, ou mesmo de espionar líderes políticos, como aconteceu com a ex-presidenta Dilma Rousseff e a ex-chanceler alemã Angela Merkel, pelos EUA, entre 2012 e 2014.
Aspectos estratégicos
A regulação chinesa, para além disso, tem dimensão econômica e estratégica. A China entende os dados como ativos nacionais e, desde 2021, estabeleceu um arcabouço legal sofisticado de proteção de dados, com leis semelhantes ao GDPR europeu. Além disso, o país criou um Departamento Nacional de Dados e os incorporou como fator de produção em sua política industrial.
Essa estrutura permitiu à China proteger seus cidadãos das big techs e, simultaneamente, desenvolver empresas nacionais competitivas, como Tencent e ByteDance. Mesmo essas companhias são alvo de regulação intensa por parte do Estado chinês, que busca limitar abusos e manter o controle sobre fluxos informacionais estratégicos.
A partir da Nova Rota da Seda Digital, a China tem estendido esse modelo de cooperação a países em desenvolvimento. Na África, por exemplo, fornece infraestrutura digital (como data centers e redes móveis), contribui para a transição do sinal de TV analógica para o digital e coopera na proteção da soberania digital local. Essa abordagem já começa a ser replicada na América Latina e poderia beneficiar o Brasil, caso seja conduzida com critérios próprios e respeito aos princípios democráticos.
Nesse ponto, entra a análise do economista Yanis Varoufakis, que enriquece o debate ao propor o conceito de “capitalismo das nuvens”. Segundo ele, as plataformas digitais não funcionam mais como empresas capitalistas tradicionais que vendem produtos, mas como feudos digitais. O verdadeiro produto são os dados dos usuários e a capacidade de manipular seus comportamentos por meio de algoritmos.
Varoufakis argumenta que os usuários se tornam trabalhadores não remunerados, gerando valor com cada clique, postagem ou visualização. Esses dados alimentam sistemas de inteligência artificial que concentram poder nas mãos das big techs. Para o economista, isso cria um novo tipo de relação social, mais próxima do feudalismo do que do capitalismo industrial — um cenário em que a autonomia digital das nações é colocada em risco pela concentração privada de algoritmos e dados.
Nesse contexto, a discussão iniciada por Lula e Janja é legítima. O governo brasileiro não precisa adotar os métodos da China, mas também não deve ignorar a necessidade de estabelecer regras que protejam seus cidadãos e garantam soberania sobre os dados gerados em seu território. A regulação das plataformas não implica censura, desde que seja feita com transparência, participação social e respeito à Constituição.
A reação da mídia tradicional, ao comparar qualquer tentativa de regulação à censura chinesa, limita a capacidade do Brasil de debater um tema central do século XXI. Países como Alemanha, França e mesmo os Estados Unidos têm avançado em legislações que responsabilizam plataformas e impõem limites ao uso de dados. O Brasil precisa fazer o mesmo, de forma soberana e equilibrada, dialogando com todos os parceiros internacionais, inclusive a China, quando isso for de seu interesse.
O episódio do TikTok evidenciou que o debate sobre regulação digital no Brasil está apenas começando e precisa amadurecer. A imprensa pode e deve exercer seu papel crítico, mas precisa fazê-lo com honestidade intelectual, sem transformar temas complexos em polarizações ideológicas rasas. A construção de um modelo brasileiro de regulação da internet requer debate público, rigor técnico e abertura para a diversidade de modelos existentes — inclusive o chinês, desde que adaptado à realidade e aos valores do país.
O desafio, de fato, é este: equilibrar liberdade de expressão com proteção aos vulneráveis, promover inovação sem abrir mão da soberania e avançar no debate sobre tecnologia sem cair em caricaturas geopolíticas. Para isso, o Brasil precisará de imprensa, governo e sociedade civil à altura desse novo tempo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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