Cocares em marcha no salão dos generais
Levar vozes indígenas para dentro desse castelo equivale a abrir frestas por onde os ares da democracia possam entrar
Há encontros que, pela sua simples ocorrência, já dizem mais que mil discursos oficiais ou paradas militares, como a recente e francamente insólita reunião entre a presidência do Superior Tribunal Militar (STM) e lideranças indígenas. Em um gesto notável, a ministra Maria Elizabeth Rocha, primeira mulher a comandar a corte castrense – um feito histórico por si só, abriu as portas do sisudo prédio em Brasília para, segundo a linguagem oficial, “acolher” quem, por tradição e triste sina, esteve quase sempre do outro lado da mira ou foi tratado como empecilho ao “progresso”. Foi nesse cenário que, na penúltima terça‐feira (14/04), atravessou um corredor de fotos de generais em preto e branco um grupo de lideranças dos povos Marubo, Guajajara, Guarani Kaiowá, Kaingang e outros. Era o Salão Nobre do STM, um espaço que ainda parece exalar o cheiro de naftalina de 1964. Embora o episódio tenha recebido cobertura discreta e pudesse parecer apenas mais uma cerimônia protocolar para a foto, ele sugere uma brecha expressiva: a possibilidade de setores de comando da caserna começarem a espelhar, finalmente, as cicatrizes e as demandas daqueles que mais sofreram nas chamadas “franjas de segurança nacional”.
Por que isso importa? Porque a justiça militar, diferentemente da justiça comum, julga crimes de soldados e generais de forma autônoma, reclusa em castelos jurídicos que a sociedade raramente visita. Levar vozes indígenas para dentro desse castelo equivale a abrir frestas por onde os ares da democracia possam entrar. Há quem chame de “teatro simbólico”. Pode ser. Mas símbolos, lembrava, Carl Jung, têm o podem de elevar o destino pessoal ao destino da humanidade.
Não se trata de ingenuidade otimista; tampouco de revanche. Minha tese — provo-a com números, relatos e um punhado de memórias recentes — é que as Forças Armadas precisam incorporar, em doutrina e prática, a luta histórica dos povos indígenas por reconhecimento, justiça e reparação. Se quiserem continuar a reivindicar o título de instituição de Estado, e não de regime, os quartéis terão de dialogar com os Waimiri‐Atroari soterrados pela BR-174 e com os Xavante removidos de Marãiwatsédé em nome de um “desenvolvimento” que sempre cheirou a concreto e pólvora. Não há coesão nem profissionalismo possíveis quando o fantasma das violações — registradas no Relatório Figueiredo (1967) e retomadas pela Comissão Nacional da Verdade em 2014 — assombra nos corredores sem que ninguém peça desculpas nem indenize famílias.
Meu primeiro argumento vem da história. Segundo levantamento da Comissão Nacional da Verdade – CNV, ao menos 8.350 indígenas morreram devido à ação ou omissão dos governos (civis, mas sobretudo os militares) e do Exército entre 1946 e 1988 — façanha sombria que alguns, nos clubes militares, ainda relativizam como “efeitos colaterais da integração”. A CNV identificou 875 casos de tortura direta contra lideranças, parte delas durante a construção da Transamazônica, onde o 5.º Batalhão de Engenharia de Construção acumulava a função de pavimentar estradas e pacificar aldeias a golpes de fuzil. Esses números não são assombração de militante: estão digitados em páginas envelhecidas do Arquivo Nacional, carimbados com URGENTE e CONFIDENCIAL.
Mas há, também, a história mais íntima — aquela que, em silêncio, transborda quando Oredes Krenak, conta que, no regime militar, “quando matavam um índio, jogavam no rio Doce e diziam pros parentes que tinha ido viajar”. Ou os relatos dos indígenas Aikewara, quando interrogados para informar onde estariam os “terroristas”, sem nem ao menos saber o que significava o termo. Ignorar esse ado não o apaga; pelo contrário, transforma‐o em tatuagem coletiva. É por isso que Manuel Domingos Neto, professor da UFF e ex‐vice‐presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, insiste que enquanto as tropas não revisitarem criticamente o que fizeram na Amazônia, continuarão prisioneiras de um mito de superioridade moral que nenhuma democracia toleraria. Em outras palavras e nos termos do próprio Manuel Domingos, é preciso enterrar o patriotismo castrense.
Meu segundo argumento trata da ética operacional contemporânea. De um lado, temos a retórica de garantia da lei e da ordem (GLO), tão acionada quanto banalizada. De outro, a Constituição de 1988, cujo artigo 231 reconhece aos povos indígenas “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O conflito é quase Hegeliano: tese, antítese, nenhuma síntese. O soldado recém‐formado na Aman aprende, ainda hoje, que a Amazônia é “vazio demográfico” suscetível a cobiça internacional. Já o censo do IBGE de 2022 aponta que a região concentra 868 mil indígenas distribuídos em 180 etnias, com línguas, cosmologias, sistemas produtivos — tudo que, na cartilha securitária, aparece reduzido à linha vermelha no PowerPoint. Para compor essas visões, não basta convidar a raposa para um café no galinheiro; é preciso reformular o manual de instruções do galinheiro.
Aqui entra a iniciativa — singela, porém inédita — da ministra Maria Elizabeth Rocha. No entanto, seria muito mais interessante, se fosse criada uma câmara consultiva permanente no STM, onde representantes indígenas pudessem apresentar casos de violações históricas e sugerir protocolos preventivos. Pode soar como burocracia adicional, mas há precedentes internacionais. No Canadá, as Forças Armadas aram a submeter exercícios em territórios ancestrais à avaliação de conselhos Inuit. Na Nova Zelândia, 11% do efetivo regular já é Māori, o que impôs mudanças na liturgia hierárquica: cantar haka antes das formaturas deixou de ser folclore e virou instrução oficial. Resultados? Há pesquisas que demonstram a redução em conflitos comunitários nas áreas de treinamento e aumento na adesão de recrutas e oficiais oriundos de minorias étnicas. Não é multiculturalismo kumbayá; é eficácia estratégica baseada em respeito.
Assim, entro em meu terceiro argumento. Quando o presidente Lula tomou posse em 2023, prometeu “recompor o pacto civilizatório” entre Estado e povos originários. O verbo recompor supõe um dia em que o pacto existiu — e há controvérsia se esse dia amanheceu. Ainda assim, o governo ensaia sinais: a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a retomada da demarcação de territórios, paralisada desde 2016, o envio de médicos e médicos militares à Terra Yanomami (em condição de apoio, não de ocupação). Contudo, os gestos do Executivo não se consolidam sem o aval, ou ao menos a aquiescência, das Forças Armadas, que mantêm autonomia logística decisiva em regiões de fronteira. Se o STM abre diálogo, cabe ao Planalto aproveitar a fenda e fincar — vá lá — um posto de escuta permanente.
Há quem tema, nos bastidores, uma reação corporativista. O generalato, historicamente avesso a mea culpas, já resmungou quando o STF considerou crime imprescritível as violações de direitos humanos sob a ditadura; imaginem agora se um cacique Macuxi puder depor na mesma tribuna em que ministros togados fiscalizam medalhas de bravura. No entanto, convém lembrar que o Exército atravessa crise de reputação: pesquisa AtlasIntel, divulgada em fevereiro de 2025, mostra que a confiança nas Forças Armadas caiu de 46% em abril de 2023 para 24% em fevereiro de 2025, mostrando uma queda de 22 pontos na confiança da população desde o 8 de Janeiro, data em que se consolidou a ação dos invasores dos Três Poderes. Ao incorporar, de forma explícita, a pauta indígena e sua demanda por justiça, os quartéis podem começar a resgatar parte desse capital simbólico, demonstrando serviço ao interesse público e não a facções palacianas.
Assim, chegou ao meu quarto e último argumento. Se o Brasil quer mesmo ser “potência ambiental” — promessa repetida em fóruns da ONU e nos relatórios otimistas da The Economist — terá de articular defesa nacional e sustentabilidade, e isso a por reconhecer os verdadeiros guardiões da floresta. Entre 1985 e 2023, as terras indígenas perderam apenas 1% de sua vegetação nativa, enquanto as áreas privadas perderam 28% no mesmo período, segundo o MapBiomas. É estatística que deveria entrar nos slides de planejamento estratégico das Forças Armadas, ao lado de gráficos de satélite e previsões climáticas. Uma doutrina verde‐oliva que ignore o verde das matas só pode produzir cinismo ou cinzas.
Aqui proponho algo ainda mais ousado que uma comissão consultiva: um núcleo indígena permanente em cada comando regional, composto por oficiais de origem indígena selecionados via concurso e formação específica. Seriam intérpretes culturais, mediadores de conflitos e, de quebra, embaixadores da biodiversidade brasileira perante adidos estrangeiros. Por que nós, donos do território, insistimos em importar manuais prontos sem traduzir para as línguas que de fato pisam o chão?
Não romantizo a caserna — longe disso. Tampouco idealizo as lideranças indígenas, divididas elas próprias entre visões de autonomia total e projetos de desenvolvimento interno. Mas o que vimos no STM sugere uma cena inédita: cocares contrapondo‐se, olho no olho, com dragonas de quatro estrelas nos quadros de generais. A ministra Maria Elizabeth parece reconhece que a pluralidade é condição da autoridade, como dizia Hannah Arendt. A autoridade pressupõe um contexto em que os seres humanos se comunicam e negociam sentidos, algo que só é possível na pluralidade. Parece aforismo acadêmico, mas produz efeito prático: se a mais alta corte da Justiça Militar itir que o monopólio da narrativa oficial faliu, o Departamento de Educação e Cultura do Exército, a Escola Naval e a própria Agência Espacial Brasileira (cujo centro de Alcântara foi erguido sobre comunidade quilombola expulsa, mas essa é outra crônica) terão de revisitar seus currículos.
Chego, pois, ao cerne reflexivo que me pediram: por que a instituição mais refratária a pressões civis — herdeira de Caxias, laica em teoria, mas devotada a ritos quase eclesiásticos — decidiu ouvir quem, até ontem, classificava como “entrave ao progresso”? Talvez porque percebeu a conveniência estratégica; talvez porque, depois do vexame do golpismo, busque cosmética humanitária. Eu, que não sou ingênuo, aceito até motivações interesseiras, se delas emergir alguma forma de reparação concreta. O filósofo estadunidense Richard Rorty dizia que as sociedades avançam não quando se convertem, mas quando ampliam o círculo da empatia por meio da imaginação e do contato com as experiências dos outros. Se o cálculo militar finalmente inclui povos indígenas, celebraremos a aritmética.
Claro, o barulho de botas ainda incomoda. Há relatórios que somem, inquéritos que prescrevem e, não esqueçamos, projetos de lei no Congresso tentando flexibilizar garimpo em áreas protegidas — alguns com lobby de oficiais da reserva incrustados em bancadas regionais. Mas algo muda quando a indiferença se torna logística: rear helicópteros Cougar ao Ministério dos Povos Indígenas pode significar vida ou morte no resgate de malária em Surucucu. E nada impede que, num futuro menos distópico, ações tragam não apenas remédios, mas desculpas oficiais — quem sabe, medalhas devolvidas e monumentos rebatizados.
Chego, enfim, à provocação final: e se as Forças Armadas brasileiras desertassem, em bloco, do paradigma colonial? Desertar, aqui, significa renunciar ao dogma de que a soberania nacional se mede em fronteiras consolidadas à força. Significa itir – com a coragem que faltou aos marechais da Velha República – que a defesa do território a, antes, pela defesa dos corpos que o habitam. Corpos múltiplos, falantes de 275 línguas e 305 povos guardiões de biomas que armazenam bilhões de toneladas de carbono. Protegê-los não é ato de caridade; é estratégia geopolítica de primeira ordem num planeta em ebulição climática.
Talvez a lição definitiva seja esta: soberania não se mede pelo alcance de um fuzil nem pelo estalido de uma continência, mas pela capacidade de ouvir — e agir a partir — das vozes que já habitavam este território muito antes do primeiro toque de trompete. Se o oficial de serviço trocar a arrogância do comando pelo assombro da escuta, há chance de que farda e cocar figurem, lado a lado, na mesma fotografia sem que um apague o outro. Caso contrário, não se iluda o leitor: os indígenas e as florestas têm ritmo próprio e continuarão pulsando além dos portões, indiferentes às paradas militares, mas atentos a cada o em falso de quem insiste em marchar sem percebê-los.
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