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      Chris Hedges

      Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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      Carta a Refaat Alareer

      A morte te levou. Mas não a sua voz ou as vozes daqueles que você imortalizou

      Refaat Alareer (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

      Publicado originalmente por ScheerPost em 7 de abril de 2025

      Este artigo foi narrado por Eunice Wong – atriz e narradora formada pela academia Juilliard (NYC), destacada na lista da Audible de Melhores Narradoras Femininas.

       Querido Refaat,

      Nós não estamos em silêncio. Estamos sendo silenciados. Os estudantes que, no último ano letivo, montaram acampamentos, ocuparam prédios, fizeram greves de fome e se manifestaram contra o genocídio, foram recebidos neste outono com uma série de regras que transformaram os campi universitários em gulags acadêmicos. Entre a minoria de acadêmicos que ousou falar, muitos foram sancionados ou demitidos. Profissionais de saúde que criticam a destruição em massa por Israel de hospitais, clínicas e os assassinatos direcionados de trabalhadores da saúde em Gaza foram suspensos ou demitidos de faculdades de medicina, com alguns enfrentando ameaças de terem suas licenças médicas revogadas.

      Jornalistas que detalham o massacre e expõem a propaganda israelense foram retirados do ar ou demitidos de suas publicações. Empregos são perdidos por postagens nas redes sociais. O punhado de políticos que condenam os assassinatos viu milhões de dólares serem gastos para expulsá-los do cargo. Algoritmos, shadow-banning, desmonetização e remoção de plataformas – todos os quais já experimentei – são usados para nos marginalizar ou banir das mídias digitais. Um sussurro de protesto, e somos apagados.

      Nenhuma dessas medidas será suspensa quando o genocídio terminar. O genocídio é o pretexto. O resultado será um enorme o em direção a um estado autoritário, especialmente com a ascensão de Donald Trump. O silêncio se expandirá, como uma grande nuvem de gás sulfuroso. Nós engasgamos com palavras proibidas. Eles te mataram. Eles estão nos estrangulando. O objetivo é o mesmo: apagamento. Sua história, a história de todos os palestinos, não deve ser contada.

      Os sionistas e seus aliados não têm mais nada em seu arsenal além de mentiras, censura, campanhas de difamação e violência – os instrumentos brutos dos condenados. Mas eu seguro em minhas mãos a arma que, no final, os derrotará. Seu livro, “If I Must Die: Poetry and Prose” [Se Eu Devo Morrer: Poesia e Prosa].

      As estórias ensinam a vida”, você escreve, “mesmo que o herói sofra ou morra no final.”

      Escrever, você dizia aos seus alunos, “é um testemunho, uma memória que sobrevive a qualquer experiência humana, e uma obrigação de nos comunicarmos conosco e com o mundo. Vivemos por uma razão: para contar as estórias de perda, sobrevivência e esperança.”

      Faz um ano desde que um míssil israelense atingiu o apartamento no segundo andar onde você estava abrigado. Você vinha recebendo ameaças de morte há semanas, online e por telefone, de contas israelenses. Já havia sido deslocado várias vezes. No final, você fugiu para a casa de sua irmã no bairro de Al-Sidra, em Gaza. Mas não escapou dos seus caçadores. Você foi assassinado junto com seu irmão Salah, um de seus filhos, sua irmã e três de seus filhos.

      Você escreveu seu poema “If I Must Die” [Se Eu Devo Morrer] em 2011. Você o republicou um mês antes da sua morte. Ele foi traduzido para dezenas de idiomas. Você o escreveu para a sua filha Shymaa. Em abril de 2024, quatro meses após a sua morte, Shymaa foi morta em um ataque aéreo israelense, junto com o seu marido e seu filho de dois meses, seu neto, que você nunca conheceu. Eles haviam buscado refúgio no prédio da organização de ajuda internacional Global Communities.

      Você escreve para Shymaa:

      Se eu morrer,você deve viverpara contar a minha históriavender as minhas coisascomprar um pedaço de panoe alguns fios,(faça-o branco, com uma cauda longa)para que uma criança, em algum lugar de Gaza,olhando para o céu,esperando por seu pai, que partiu em chamas —sem se despedir de ninguém,nem da sua carne,nem de si mesmo —veja a pipa, minha pipa que você fez, voando lá em cimae pense, por um momento, que um anjo está ali,trazendo de volta o amor.Se eu morrer,que traga esperança,que seja um conto.

      =

      Você se juntou aos poetas mártires. O poeta espanhol Federico García Lorca. O poeta russo Osip Mandelstam. O poeta húngaro Miklós Radnóti, que escreveu seus últimos versos em uma marcha da morte. O cantor e poeta chileno Víctor Jara. O poeta negro Henry Dumas, morto a tiros pela polícia de Nova York.

      Em seu poema “And We Live On…” [E Nós Seguimos Vivendo], você escreve:

      Apesar dos pássaros da morte de Israelpairando a apenas dois metros do nosso fôlego,dos nossos sonhos e orações,bloqueando o seu caminho até Deus.Apesar disso.Nós sonhamos e oramos,agarrando-nos à vida com ainda mais forçacada vez que a vida de um ente queridoé arrancada à força.Nós vivemos.Nós vivemos.Nós vivemos.

      =

      Por que os assassinos temem os poetas? Você não era um combatente. Você não carregava uma arma. Você colocava palavras no papel. Mas todo o poder do exército e dos serviços de inteligência de Israel foi mobilizado para te caçar.

      Em tempos de angústia, quando o mundo está envolto em crueldade e sofrimento, quando as vidas estão à beira do abismo, a poesia é o lamento triste dos oprimidos. Ela nos faz sentir o sofrimento. É intuitiva. Captura a mistura de emoções complexas – alegria, amor, perda, medo, morte, trauma, luto – quando o mundo desmorona. Cria, em sua beleza, um significado salvífico a partir do desespero. É um ato absurdo de esperança, um ato desafiador de resistência, zombando com erudição e sensibilidade daqueles que te desumanizam. Sua fragilidade e beleza, sua santificação da memória, da experiência e do intelecto, sua musicalidade, ridicularizam os slogans simplistas e o discurso vazio dos assassinos.

      Em seu poema “Freshly Baked Souls” [Almas Recém Saídas do Forno], você escreve:

      Os corações não são corações.Os olhos não podem ver.Não há olhos ali.Os ventres famintos por mais.Uma casa destruída, exceto pela porta.A família, todos eles, mortos.Exceto por um álbum de fotosque precisa ser enterrado com eles.Ninguém ficou para guardar as memórias.Ninguém.Exceto almas recém-assadas em ventres.Exceto um poema.

      =

      Escrever, como Edward Said nos lembra, é “a última resistência que temos contra as práticas desumanas e as injustiças que desfiguram a história humana.”

      A violência não pode criar. Ela só destrói. Não deixa nada de valor para trás.

      Não esqueça que a Palestina foi primeiro e principalmente ocupada na literatura e na poesia sionistas”, você disse em uma aula para os seus alunos de Poesia Inglesa Avançada na Universidade Islâmica de Gaza. “Quando os sionistas pensaram em voltar para a Palestina, não foi como: ‘Ah, vamos para a Palestina.’”

      Você estalou os dedos:

      Levou anos, mais de cinquenta anos de reflexão, planejamento, toda a política, dinheiro e tudo mais. Mas a literatura desempenhou um dos papéis mais cruciais aqui. Esta é nossa aula. Se eu disser: ‘Vamos para a outra sala’, vocês precisam de garantias de que vamos para lá, que vamos encontrar cadeiras – certo? Que o outro lugar é melhor, mais pacífico. Que temos algum tipo de conexão, algum tipo de direito.

      Então, por cinquenta anos antes da ocupação da Palestina e da criação do chamado Israel em 1948, a Palestina na literatura judaica sionista foi apresentada ao povo judeu ao redor do mundo como... ‘uma terra sem povo para um povo sem terra’. ‘A Palestina flui com leite e mel’. ‘Não há ninguém lá, então vamos.’

      Os assassinos estão presos em um mundo literal. Suas imagens estão calcificadas. Eles desligaram a empatia. Eles sabem do poder da poesia, mas não sabem de onde vem esse poder, como uma plateia boquiaberta diante da habilidade de um mágico. E o que não entendem, destroem. Eles não têm capacidade de sonhar. Os sonhos os aterrorizam.

      O general israelense Moshe Dayan disse que os poemas de Fadwa Tuqan, que estudou em Oxford, “eram como enfrentar vinte combatentes inimigos.”

      Tuqan escreve em “Martyrs Of The Intifada” [Mártires da Intifada] sobre os jovens que atiravam pedras em soldados israelenses fortemente armados:

      Eles morreram de pé, em chamas na estrada,brilhando como estrelas, seus lábios pressionados contra os lábios da vida.Eles se levantaram diante da mortee então desapareceram como o sol.

      =

      Muitos palestinos podem recitar de memória trechos dos poemas “To My Mother” [Para A Minha Mãe] e “Write Down I am an Arab”  Anote Que Eu Sou um Árabe] do poeta mais celebrado da Palestina, Mahmoud Darwish. As autoridades israelenses perseguiram, censuraram, prenderam e mantiveram Darwish em prisão domiciliar antes de expulsá-lo para o exílio. Seus versos adornam as barreiras de concreto erguidas por Israel para isolar os palestinos na Cisjordânia e são incorporados em canções de protesto populares.

      Seu poema “Write Down I am an Arab” [Anote: Eu sou um Árabe] diz:

      Anote:—Eu sou um árabeE meu número de identificação é 50.000Tenho oito filhosE o nono virá depois do verão.Você ficará com raiva?Eu sou um árabeE trabalho com meus companheiros em uma pedreiraE tenho oito filhosGaranto-lhes pão, roupas e cadernosExtraídos das rochasE não peço esmola à sua porta,Nem me rebaixo nos degraus do seu tribunal.—Você ficará com raiva?Anote:—Eu sou um árabe.Sou um nome sem um epíteto,Paciente em um país onde tudotem um o de raiva.Minhas raízes—Estavam profundamente entrincheiradas antes do nascimento do tempo—E antes do surgimento das eras,—Antes dos ciprestes e das oliveiras,—Antes mesmo de a grama crescer.Meu pai vem de uma família de lavradores, não de barões de sangue azul.Meu avô era um agricultor, totalmente desconhecido.Ele me ensinou sobre o zênite da alma antes de me ensinar a ler.E minha casa é uma cabana feita de paus e bambus.Você está descontente com a minha condição?Sou um nome sem um epíteto!Anote:—Eu sou um árabe.Cor do cabelo: como carvão; cor dos olhos: castanhos.Marcas distintivas: uso uma faixa na cabeça sobre um keffiyeh.—E minha palma é sólida como rocha, arranha quem a toca.Quanto ao meu endereço: sou de uma vila isolada, esquecida.—Suas ruas não têm nome.—Todos os seus homens estão no campo ou na pedreira.—Você ficará com raiva?Anote.—Eu sou um árabe.Você roubou os prados de meus ancestrais e a terra que eu cultivava.—Junto com todos os meus filhos.—Você não deixou para nós ou para meus descendentes—Nada – exceto essas rochas.—Então, seu governo vai tomá-las também, como foi anunciado?—Nesse caso,—Anote—No topo da primeira página:—Eu não odeio as pessoas e não roubo ninguém.—Mas... Se eu morrer de fome, não terei nada além—Da carne do usurpador para me alimentar.—Cuidado, cuidado com minha fome e minha raiva.

      =

      Você escreveu sobre seus filhos. Suas palavras seriam o legado deles.

      Para a sua filha Linah, então com oito anos, ou como você diz “no tempo de Gaza, duas guerras de idade”, você contava histórias antes de dormir quando Israel bombardeava Gaza em maio de 2021, quando seus filhos “ficavam sentados na cama, tremendo, sem dizer nada.” Você não deixou a sua casa, uma decisão que tomou para “morremos juntos.”

      Você escreve:

      Na terça-feira, Linah fez a sua pergunta novamente depois que minha esposa e eu não respondemos da primeira vez: Eles podem destruir nosso prédio se a energia estiver cortada? Eu queria dizer: “Sim, Linahzinha, Israel ainda pode destruir o belo prédio al-Jawharah, ou qualquer um dos nossos prédios, mesmo no escuro. Cada um de nossos lares está cheio de estórias que precisam ser contadas. Nossas casas irritam a máquina de guerra israelense, zombam dela, assombram-na, mesmo no escuro. Ela não a a sua existência. E, com dólares de impostos estadunidenses e imunidade internacional, Israel presumivelmente continuará destruindo os nossos prédios até não sobrar coisa alguma.”

      Mas não posso dizer isso à Linah. Então minto: “Não, querida, eles não podem nos ver no escuro.”

      A morte em massa não era nova para você. Você foi baleado por soldados israelenses com três balas de metal revestidas de borracha quando era adolescente. Em 2014, seu irmão Hamada, o avô da sua esposa, seu irmão, sua irmã e os três filhos dela foram mortos em um ataque israelense. Durante o bombardeio, mísseis israelenses destruíram os escritórios do Departamento de Inglês da Universidade Islâmica de Gaza [IUG] , onde você guardava “estórias, trabalhos e provas para possíveis projetos de livro.”

      O porta-voz do exército israelense afirmou que bombardearam a universidade para destruir um “centro de desenvolvimento de armas”, uma declaração posteriormente alterada pelo ministro da Defesa israelense, que disse “a IUG estava desenvolvendo produtos químicos para serem usados contra nós.”

      Você escreve:

      Minhas palestras sobre tolerância e compreensão, Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) e resistência não-violenta, e poesia e estórias e literatura não nos ajudaram nem nos protegeram contra a morte e a destruição. Meu lema “Isso também ará” virou piada para muitos. Meu mantra “Um poema é mais poderoso que uma arma” foi ridicularizado. Com meu próprio escritório destruído pela destruição israelense, os alunos não paravam de brincar sobre eu desenvolver PMDs, “Poemas de Destruição em Massa”, ou TMDs, “Teorias de Destruição em Massa”. Os alunos brincavam que queriam aprender poesia química ao lado de poesia alegórica e narrativa. Eles pediam estórias de curto alcance e estórias de longo alcance em vez de termos normais como contos e romances. E me perguntaram se as minhas provas teriam perguntas capazes de carregar ogivas químicas!

      Mas por que Israel bombardeia uma universidade? Alguns dizem que Israel atacou a IUG apenas para punir os seus vinte mil alunos ou para levar os palestinos ao desespero. Embora isso seja verdade, para mim, o único perigo da IUG para a ocupação israelense e o seu regime de apartheid é que ela é o lugar mais importante em Gaza para desenvolver as mentes dos alunos como armas indestrutíveis. O conhecimento é o pior inimigo de Israel. A consciência é o adversário mais odiado e temido por Israel. É por isso que Israel bombardeia uma universidade: quer matar a abertura e a determinação de se recusar a viver sob injustiça e racismo. Mas, novamente, por que Israel bombardeia uma escola? Ou um hospital? Ou uma mesquita? Ou um prédio de vinte andares? Será que é, como Shylock disse, “um divertimento alegre”?

      A luta existencial dos palestinos é rejeitar a barbárie dos ocupantes israelenses, recusar-se a espelhar o seu ódio ou replicar a sua selvageria. Isso nem sempre dá certo. A raiva, a humilhação e o desespero são forças poderosas que alimentam um desejo de vingança. Mas você lutou heroicamente essa batalha por sua humanidade, e pela nossa, até o fim. Você incorporou uma decência que seus opressores não tinham. Você encontrou salvação e esperança nas palavras que capturavam a realidade de um povo enfrentando o apagamento e a morte. Você nos pediu para sentirmos por essas vidas, incluindo a sua, que foram perdidas. Você sabia que chegaria um dia – um dia que talvez nunca visse – em que suas palavras exporiam os crimes daqueles que te assam e ergueriam as vidas perdidas daqueles que você honrou e amou. Você conseguiu. A morte te levou. Mas não a sua voz ou as vozes daqueles que você imortalizou.

      Você, e eles, continuam vivos.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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