A nova corrida do ouro são os dados — e o Brasil está prestes a entregá-los
Enquanto o governo busca bilhões em investimentos para data centers, cresce o risco de entregar nossa infraestrutura digital ao controle das mesmas big techs
Por Reynaldo Aragon e Eden Cardim - O choque de contradições - Fernando Haddad desembarca nos Estados Unidos em busca de investimentos bilionários para data centers no Brasil. Sua missão é sedutora: atrair gigantes como Amazon, Nvidia e Google para instalar parte de suas operações em território nacional, sob a promessa de energia limpa, incentivos fiscais e contrapartidas reguladas. O problema? Essas mesmas empresas foram e continuam sendo peças centrais na arquitetura de desinformação, manipulação política e espionagem que empurrou o Brasil ao colapso institucional vivido na última década. O que parece ser um plano de desenvolvimento, na verdade, esconde uma armadilha estratégica criada ainda no governo Ronald Reagan: o enraizamento definitivo da dependência tecnológica do Brasil às engrenagens do império tecnolibertário que sustenta o governo Trump, também o bolsonarismo.
A contradição é gritante. Como pode um governo que foi vítima direta da guerra informacional e do lawfare cibernético agora estender o tapete vermelho às corporações que servem como ponta de lança para a estratégia de dominação de espectro total do imperialismo? A máquina de destruição política que viabilizou o bolsonarismo, desmoralizou instituições, enfraqueceu a democracia e instrumentalizou o sistema de justiça não teria sido possível sem a leniência (quando não o estímulo deliberado) das plataformas digitais controladas por essas mesmas big techs. O que está em curso não é apenas uma negociação comercial: é a entrega da espinha dorsal da infraestrutura informacional do país a agentes que já provaram não respeitar nem soberania, nem democracia.
Muito mais do que uma visita diplomática em busca de dólares, essa iniciativa revela a ausência de um projeto soberano do país no campo digital e o coloca em rota de colisão com o fortalecimento dos BRICS. Em nome de uma modernização apressada, o Brasil caminha para repetir o erro histórico de abrir mão da sua autonomia em troca de promessas que dificilmente se convertem em desenvolvimento real. O discurso da inovação esconde, mais uma vez, o velho roteiro de dependência e submissão tecnológica.
O perigo da dependência tecnológica com os mesmos que atacam - A história recente do Brasil é marcada por um tipo de guerra que não se trava com tanques ou mísseis, mas com dados, algoritmos, plataformas e narrativas. Desde o escândalo da NSA revelado por Edward Snowden em 2013 até a ascensão meteórica do bolsonarismo nas redes sociais, ficou evidente que o país foi transformado em um laboratório de guerra híbrida e manipulação informacional em larga escala. E, nesse processo, as chamadas big techs, corporações como o Google, Meta, Amazon, X (ex-Twitter), Microsoft e tantas outras — não foram observadoras ivas. Foram facilitadoras, gestoras e beneficiárias diretas do colapso cognitivo e democrático brasileiro.
A desestabilização do governo Dilma Rousseff, o bombardeio de notícias falsas durante as eleições de 2018, a normalização do discurso de ódio, o lawfare contra Lula e o desmonte da institucionalidade democrática aram, quase todos, por seus canais, suas lógicas algorítmicas e seus modelos de negócios. A manipulação da opinião pública se deu com a anuência dessas empresas, seja por meio da omissão no controle de conteúdo, seja pela priorização de lucro e engajamento acima da verdade e da democracia. Não há como separar o avanço da extrema-direita no Brasil da infraestrutura que o sustentou. E nossa infraestrutura foi, em grande parte, construída e operada por essas corporações transnacionais.
A dependência tecnológica não é apenas uma questão operacional ou técnica. É um problema de soberania. Quando o Brasil permite que sua infraestrutura de dados, computação, comunicação e inteligência artificial sejam controladas por empresas estrangeiras, localizadas em países com interesses geopolíticos próprios e frequentemente hostis ao Sul Global, está entregando sua autonomia de decisão, sua segurança estratégica e sua capacidade de reagir a crises. Os dados que hoje alimentam sistemas públicos e privados são ativos de poder. E ao entregá-los, entregamos também nossa capacidade de proteger o futuro.
Mais do que provedores de soluções tecnológicas, essas empresas atuam como braços do projeto de dominação global dos Estados Unidos. São parte do chamado complexo digital-militar, um arranjo em que inovação, vigilância, big data, controle comportamental e geopolítica se misturam em um só pacote. Quando o governo brasileiro escolhe, por conveniência ou ingenuidade, consolidar essas empresas como pilares da sua modernização digital, não está apenas abrindo uma linha de crédito. Está cedendo espaço institucional, simbólico e estratégico ao império. Nem mesmo os EUA permitem que serviços como o Tik Tok operem em infraestrutura de empresas que não sejam norte-americanas.
O Plano Redata e o flerte com o abismo - Lançado como um dos pilares da política de atração de investimentos em infraestrutura digital, o Plano Nacional de Data Centers, apelidado de Redata, surge embalado por uma narrativa promissora. O governo estima que, por meio de incentivos fiscais e exigências sustentáveis, será possível mobilizar até dois trilhões de reais em investimentos privados na próxima década. Trata-se, segundo seus defensores, de um projeto que conectaria o Brasil ao futuro, posicionando o país como um hub estratégico de tecnologia, inteligência artificial e transição verde.
Mas a pergunta que se impõe é clara: a que custo? - O Redata propõe desonerações para equipamentos e insumos usados na construção e operação de data centers, visando acelerar sua instalação em território nacional. Para receber os benefícios, os projetos devem cumprir algumas exigências — uso de energia 100% renovável, critérios de eficiência hídrica e energética, 10% da capacidade dedicada ao mercado interno, 2% da receita revertida ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico. Essas cláusulas, que à primeira vista parecem garantir responsabilidade e contrapartidas sociais, não respondem à questão central: quem vai operar essa infraestrutura? E com que interesses?
A visita de Haddad às sedes de Amazon, Google, Nvidia e outras gigantes indica o caminho que o governo parece disposto a seguir. O Redata, na prática, pode se transformar em um cavalo de Troia, um projeto que abre oficialmente as portas para que empresas estrangeiras controlem o coração da infraestrutura digital do Brasil. Serão elas que armazenarão, processarão e circularão os dados de governos, empresas e cidadãos. O controle físico estará em território nacional, mas o controle político e estratégico continuará fora de alcance.
Mais grave ainda é a ausência de articulação com atores nacionais estratégicos. Empresas públicas como Telebras, Serpro e Dataprev, que acumulam décadas de experiência e operam sob legislação nacional, não aparecem como protagonistas do plano. Tampouco se vê uma mobilização coordenada com universidades, centros de pesquisa, movimentos sociais ou iniciativas populares de soberania digital. O Redata, tal como vem sendo apresentado, parece mais voltado a agradar investidores do que a fortalecer um projeto nacional de tecnologia. É um modelo de modernização que repete a velha lógica colonial: os dados são nossos, mas o domínio é deles.
A construção de uma infraestrutura digital vigorosa é essencial para o país. Mas sem uma estratégia soberana, o que se apresenta como desenvolvimento pode se transformar em dependência crônica, travestida de inovação. O abismo, neste caso, tem nome, endereço e interesses bem definidos.
Existem alternativas: por que ignorá-las? - Não é por falta de caminhos que o governo brasileiro se encontra na encruzilhada entre dependência e soberania digital. Existem alternativas viáveis, concretas e em andamento que apontam para outro modelo de desenvolvimento tecnológico — mais justo, autônomo e alinhado aos interesses nacionais. Ignorá-las não é apenas um erro de estratégia. É uma escolha política.
O Brasil possui uma base técnica, científica e institucional capaz de liderar sua própria transformação digital. Empresas públicas como o Serpro, a Dataprev e a Telebras já operam infraestruturas essenciais com segurança, confiabilidade e soberania jurídica. Essas instituições são parte do patrimônio nacional e acumulam décadas de experiência no tratamento de dados sensíveis. Ignorá-las em favor de soluções importadas é abrir mão deliberadamente do que já está ao alcance.
No campo da sociedade civil, movimentos como o Coletivo Digital, o Comitê para Democratização da Informática, e a iniciativa Soberania.digital vêm propondo e implementando modelos de infraestrutura tecnológica descentralizada, baseada em software livre, dados abertos, redes comunitárias e controle público. Essas ações não apenas democratizam o o à tecnologia, mas também constroem autonomia coletiva a partir do território, da cultura e das necessidades reais da população.
Também no cenário internacional existem opções fora do eixo de dominação das big techs ocidentais. Como membro dos BRICS, o Brasil poderia estreitar parcerias com países que desenvolvem suas próprias infraestruturas digitais, como a China e a Rússia, sem subordinar seus sistemas ao Vale do Silício. Ou, no mínimo, diversificá-las. O investimento em redes nacionais de pesquisa, como a RNP (Rede Nacional de Ensino e Pesquisa), e a valorização das universidades públicas, podem criar ambientes tecnológicos de ponta sob controle soberano.
Além disso, há uma urgência ética. A arquitetura tecnológica do futuro precisa ser construída com base em valores como transparência, inclusão, justiça social e defesa dos direitos humanos. Inclusive, esses costumavam ser os princípios fundamentais da Internet civil em seus primórdios. Não se trata apenas de onde estarão os servidores ou de quem fornecerá os cabos e processadores, mas de quem define os critérios, os algoritmos e as regras do jogo. As big techs, com seu histórico de abusos, censura seletiva, evasão fiscal e captura de dados, não são parceiras confiáveis para esse projeto.
Há décadas, o Brasil debate sua condição periférica na geopolítica global. Neste momento, tem nas mãos uma oportunidade rara de reposicionar-se estrategicamente. Mas para isso, é preciso coragem para romper com o vício da dependência e investir em um projeto próprio, nacional, popular e democrático de soberania digital.
A soberania digital é agora - Estamos diante de uma encruzilhada histórica. A infraestrutura tecnológica que o Brasil construir hoje definirá não apenas seu lugar no mapa da inovação global, mas também sua capacidade de proteger a democracia, garantir direitos e preservar sua autonomia política diante das potências que disputam o comando do mundo digital, que são hoje, o que os oceanos eram no século XV. A soberania, no século XXI, a menos pelos tanques e mais pelos cabos de dados, menos pelos exércitos e mais pelos algoritmos.
Se o governo brasileiro decidir seguir pelo caminho da dependência das big techs ocidentais, estará repetindo os mesmos erros que entregaram nosso petróleo, nossa energia e nossas telecomunicações. Só que, desta vez, a entrega será mais profunda e menos visível. Porque os dados, ao contrário dos poços de petróleo, não exalam cheiro. Eles circulam em silêncio, processam comportamentos, constroem narrativas e moldam consensos. São invisíveis, mas definem o que uma sociedade vê, sente, pensa e decide.
Não se trata de tecnofobia. Trata-se de lucidez. Uma política digital soberana precisa articular Estado, universidade, setor público e iniciativas populares. Precisa fomentar o desenvolvimento de tecnologias abertas, descentralizadas, auditáveis e controladas por brasileiros. Precisa reconhecer que a soberania digital não é um luxo ideológico — é uma exigência para que a democracia sobreviva à era da hiperconectividade.
O que está em jogo não é apenas onde estarão instalados os data centers. É quem decidirá o futuro do país. E, como a história recente nos ensinou com brutalidade, não há neutralidade possível quando se trata de poder informacional. Ou construímos soberania, ou seremos apenas o backstage técnico de uma dominação travestida de inovação. A soberania digital é agora. E cada concessão feita hoje poderá se tornar, amanhã, a trincheira onde ruirá nossa capacidade de decidir sobre nós mesmos.
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