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      Gustavo Guerreiro

      Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

      8 artigos

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      A máquina de deportar e o espectro do neofascismo

      Trump não inventou o pânico moral contra imigrantes, apenas o elevou à condição de liturgia estatal estadunidense

      Brasileiros deportados pelos Estados Unidos (Foto: Reprodução X / Paulo Pimenta)

      Como pesquisador no campo das ciências sociais, procuro observar as sombras da história. Dedico-me a escrever sobre o que permanece nas entrelinhas ou no silêncio. Certa vez, quando um amigo me perguntou para que serviam os sociólogos, respondi, evocando o famoso ilusionista Mister M: Revelamos a mágica. E é justamente nessa revelação que encontramos os sinais mais perturbadores de nosso tempo.

      Há um silêncio particular que precede a tempestade nas democracias em decomposição. É o silêncio das engrenagens estatais se recompondo para devorar os indesejáveis, dos discursos que substituem a razão pelo pânico moral, das fronteiras que se convertem em trincheiras contra inimigos forjados. Não é novo: na década de 1930, Walter Benjamin já alertava que o fascismo transforma a política em espetáculo da violência. Hoje, sob o segundo mandato de Donald Trump, a história se repete como farsa, onde imigrantes são reduzidos a cifras de um cálculo geopolítico e a deportação em massa se manifesta como uma vitória da necropolítica.

      Trump não inventou o pânico moral contra imigrantes, apenas o elevou à condição de liturgia estatal estadunidense. Seu discurso de posse foi um verdadeiro manifesto necropolítico: prometeu “limpar” o território nacional, como se seres humanos fossem resíduos a serem varridos para debaixo do tapete da história. A metáfora higienista, carregada de eugenia, não é acidental. Recentemente, Trump sugeriu “limpar” a Faixa de Gaza, defendendo a remoção de milhões de palestinos para o Egito e a Jordânia, tratando a região como um “local de demolição” e reforçando a ideia de que populações inteiras podem ser deslocadas como peças descartáveis. Como notou Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo, a desumanização do outro é o primeiro o para sua eliminação simbólica — e, depois, física.

      Ao decretar emergência na fronteira com o México, Trump não apenas mobilizou o Exército: armou um teatro de guerra contra civis desarmados. A militarização de espaços civis é sintoma de que o biopoder abdicou de sua máscara democrática. Nesse caso, os tanques blindados não combatem invasores externos, mas encenam o espetáculo da soberania espetacularizada — um teatro em que o Estado exibe seu poderio covardemente sobre corpos vulneráveis.

      A política de “remoção acelerada” não é mero ajuste burocrático. É a legalização do estado de exceção, onde imigrantes são deportados sem audiência judicial, sem direito à defesa, sem sequer o simulacro de um julgamento justo. Giorgio Agamben diria que estes indivíduos são reduzidos a homines sacri — vidas nuas, destituídas de valor político. O que Trump instituiu não é uma medida de segurança, mas uma linha de montagem para a expulsão industrializada de seres humanos.

      Os voos fretados que transportam deportados — algemados, desidratados, tratados como carga indesejada — são a materialização dessa lógica. Não são meros meios de transporte: são cápsulas do horror que lembram, em escala menor, os trens de carga nazistas do século XX. A diferença é que, agora, a violência é revestida de legalidade neoliberal, e os agentes usam ternos e crachás em vez de uniformes militares.

      Na esfera econômica, o paradoxo se torna evidente: a máquina deportadora, que se apresenta como guardiã das fronteiras, revela-se, de fato, um veículo de autodestruição. A expulsão em massa, cujos custos chegam a cifras astronômicas – como os US$ 315 bilhões apontados pelas estimativas – afronta a lógica de um mercado que depende da mão de obra imigrante para se manter produtivo. Assim, o discurso da soberania se desmanchará diante do iminente desastre econômico. Isso custará, inexoravelmente, caro demais ao próprio Estado.

      Há uma ironia grotesca em ver políticos autoritários dançando "Y.M.C.A." em comícios, braços erguidos formando as letras da canção que, nos anos 1970, era um hino clandestino da contracultura LGBTQ+. O Village People, que desafiava normas de gênero em plena era disco, hoje vendeu sua ode à liberdade para grupos que celebram campos de detenção e muros fronteiriços. Mas eis o paradoxo do neoliberalismo fascizante: ele devora símbolos subversivos para esvaziá-los de sentido, transformando o que era canto de resistência em trilha sonora do conformismo.

      A coreografia de "Y.M.C.A.", hoje repetida em eventos de figuras como Steve Bannon e Javier Milei, expõe a hipocrisia de quem ergue os braços para celebrar uma música nascida nas margens, enquanto promove políticas que esmagam essas mesmas margens. O gesto que antes significava acolhimento — o Y.M.C.A. histórico era refúgio para jovens rejeitados pelas famílias — agora é encenado por quem defende a expulsão de imigrantes e a perseguição a dissidentes. Enquanto o poder entoa "young man, there's no need to feel down", aprofunda o abismo social que condena milhões ao desespero.

      Trump não está só. Os Estados Unidos se enredam na narrativa do pavor dentro de um contexto em que a extrema direita global se articula, principalmente na Europa. Os partidos reacionários – do Vox ao Chega – não são meros membros do espectro eleitoral, mas articulam de forma organizada uma ação global do ódio. O que se observa é a convergência de uma retórica que converte a alteridade no vilipêndio, reforçando uma ideia de segurança que se torna, em essência, instrumento de exclusão e opressão.

      Existe também uma reação internacional que eleva o tom do alerta. O Papa Francisco denunciou os planos de deportação em massa como um ultraje aos princípios que regem a dignidade humana. A reação veemente do governo Lula – que denunciou a situação dos deportados como “degradante” e “inaceitável” – reforça a necessidade de se criar uma frente ampla de combate à escalada fascista.

      A espiral autoritária que se tem em seu ponto alto a política migratória de Trump é o retrato de um tempo em que o medo e o discurso de ódio se sobrepõem à razão e ao debate democrático. O perigo não está apenas nas deportações em si, mas na normalização de práticas que corroem a ideia de humanidade compartilhada.

      Como disse Hannah Arendt, o totalitarismo não é um inferno, mas um deserto — um lugar onde a solidariedade é substituída pelo medo. Resistir a esse deserto demanda ação coletiva, memória histórica e a coragem de nomear o fascismo, mesmo quando ele veste em suas mais variadas fantasias, como o bolsonarismo.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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