A Ética da Representação em agonia: O Parlamento à beira do abismo
Entre gritos, vídeos e mentiras, o Brasil assiste à degradação do papel mais nobre da política: representar o povo com honra. Este texto é um chamado à lucidez
A democracia brasileira repousa sobre um princípio fundamental: a representação popular. Deputados federais e senadores são eleitos para serem a voz do povo no Congresso Nacional, carregando consigo a responsabilidade de legislar em prol do bem comum. Essa missão exige não apenas competência técnica, mas, sobretudo, ética e decoro no exercício do mandato.
A ética da representação implica agir com integridade, respeito e compromisso com os valores democráticos. Os parlamentares devem colocar os interesses da nação acima de ambições pessoais ou partidárias, buscando sempre o diálogo construtivo e a promoção da justiça social. Quando esses princípios são negligenciados, a credibilidade das instituições é abalada, e a confiança da população é corroída.
Infelizmente, o cenário atual do Congresso Nacional revela uma preocupante erosão desses valores. Casos de desrespeito, discursos de ódio e comportamentos inadequados têm se tornado frequentes, transformando o parlamento em palco de escândalos e confrontos que envergonham a nação.
Em 2014, o então deputado Jair Bolsonaro proferiu uma declaração abjeta no plenário da Câmara dos Deputados, afirmando que “não estupraria” a colega Maria do Rosário por considerá-la “feia”. Essa fala misógina gerou indignação nacional e resultou em ações penais por apologia ao crime e injúria. O Supremo Tribunal Federal aceitou a denúncia, e Bolsonaro tornou-se réu.
Em 2023, o deputado Nikolas Ferreira ocupou a tribuna do Congresso para zombar de pessoas trans. Com uma peruca loira, ridicularizou identidades de gênero e afirmou que “homens que se sentem mulheres” estão roubando o espaço das mulheres reais. O ato rendeu-lhe condenação por dano moral coletivo. O espaço legislativo, que deveria servir à escuta e à construção de consensos, foi transformado em um teatro de escárnio.
Durante a pandemia de COVID-19, entre 2020 e 2022, o deputado Osmar Terra usou sua visibilidade para atacar a ciência. Disseminou informações falsas sobre vacinas, negou evidências epidemiológicas e incentivou estratégias comprovadamente ineficazes. Em um país que sempre foi referência mundial em imunização, tais atitudes foram trágicas, colaborando com a disseminação da doença e o aumento do número de mortos.
O Congresso Brasileiro e o colapso da ética comezinha
Nos últimos anos, o plenário tem se tornado uma arena de agressões verbais, ataques pessoais e cenas que pouco ou nada lembram o espírito do debate democrático. Palavras como “ladrão”, “corrupto” e “mentiroso” são lançadas como mísseis, muitas vezes sem qualquer base factual. Em 2023, a ministra Anielle Franco foi alvo de falas carregadas de racismo e misoginia, evidenciando que parte do parlamento perdeu completamente o senso de responsabilidade com o discurso público.
Como professor que ministrou aulas sobre ética na istração pública durante oito anos no próprio Senado Federal, assisto com perplexidade — e profunda tristeza — ao espetáculo deprimente protagonizado por Suas Excelências. Saber que muitos dos que hoje atacam colegas, gritam, mentem ou até trocam socos em plenário já foram expostos ao conteúdo e à reflexão ética me faz constatar que não há escassez de formação, mas sim uma preocupante banalização da integridade como valor.
A escalada da violência retórica tem, não raramente, ultraado o limite da linguagem para desaguar em violência física. Parlamentares têm protagonizado cenas lamentáveis de socos, empurrões e pancadas dentro do Congresso, como se o confronto fosse não apenas argumentativo, mas corporal. A institucionalização da truculência, em pleno plenário, é mais um sintoma da falência do decoro.
Parlamentares ausentes por longos períodos, mas pontuais no recebimento de salários e verbas, também protagonizam esse teatro da negligência. Alguns desaparecem por meses em agendas paralelas no Brasil ou no exterior, enquanto o país continua à espera de soluções urgentes para a desigualdade, a saúde e a educação. A omissão se soma à ofensa.
Pior ainda: muitos que se fazem presentes nas sessões usam o espaço legislativo para autopromoção digital. Em vez de participarem efetivamente de debates cruciais à nação, am o tempo gravando vídeos para redes sociais, com falas infladas de polêmica e vazio informativo. O plenário, então, converte-se em cenário para encenações, e o mandato se esvazia em curtidas.
Mentira deliberada como estratégia
Esse tipo de atuação não brota no vácuo. Ele nasce da crescente substituição da verdade pela conveniência e da razão pela retórica de impacto. A disseminação de fake news não é mais um acidente de percurso: tornou-se método. Parlamentares distorcem dados, fabricam inimigos e manipulam manchetes para alimentar narrativas que reforçam suas bolhas ideológicas. Isso destrói a capacidade do debate democrático de produzir sínteses — e instala uma lógica de confronto permanente.
Nesse ambiente, a mentira legislativa adquire status de estratégia. Uma verdade parcial, um dado isolado, um vídeo editado — qualquer artifício serve para inflamar os ânimos e manter viva a indignação seletiva. A busca honesta por soluções é substituída por slogans fáceis e teatralizações de moralidade. O dano à vida pública é profundo. E o povo, desorientado, a a não saber mais em quem confiar.
Essa erosão do compromisso com a veracidade é agravada pela indiferença ao sofrimento concreto da população. Enquanto milhões enfrentam a fome, o desemprego e a falta de o a serviços básicos, o Congresso frequentemente se ocupa de pautas que servem apenas a interesses corporativos, ideológicos ou midiáticos. A ética da representação exige escuta, compaixão e coerência — não arrogância performática.
A ética como fundação da política
A ética, desde os tempos da filosofia clássica, é o fundamento do agir coletivo. Sócrates via o autoconhecimento como base para a ação justa. Platão sonhava com governantes filósofos — justos e íntegros. Aristóteles compreendia a política como desdobramento da ética, voltada à realização do bem comum. Essa herança não é uma abstração: ela estrutura as bases das democracias modernas. Sem ética, a política degenera em espetáculo e a justiça, em farsa.
Um país que negligencia a ética caminha como um edifício condenado, com trincas invisíveis que anunciam seu colapso iminente. A ausência de integridade nos representantes destrói a confiança nas instituições e abre espaço para discursos autoritários e soluções simplistas. Um Estado sem ética é como uma represa rachada: cedo ou tarde, a pressão explode — e o que se perde não são apenas votos, mas vidas e direitos.
Diante desse cenário, é urgente reconectar o exercício da política com a moral pública. O Parlamento precisa ser reconstruído como espaço de escuta qualificada, onde o confronto de ideias não seja guerra, mas fermento. Onde o mandato não seja trampolim de vaidades, mas tribuna da cidadania.
Representar significa servir. Significa ouvir antes de falar. Significa resistir à tentação do espetáculo fácil e abraçar o compromisso silencioso com o bem comum. Representar é ser fiel ao povo, e não ao algoritmo. É tempo de relembrar que a verdade não é opcional — é alicerce.
É hora de uma convocação nacional. Que se ergam vozes lúcidas em defesa da veracidade — que, como ensinam os grandes sábios da humanidade, é a base de todas as virtudes humanas. E que a cortesia, o respeito mútuo, volte a ser reconhecida como o príncipe de todas as virtudes, como ensinaram não apenas os filósofos gregos, mas também os fundadores das grandes religiões. Que o Parlamento volte a ser uma casa de leis, e não de vaidades. Pois quando a ética é exilada, a civilização se desintegra — e a democracia vira palco de tragédia anunciada.
Ou a ética volta ao centro do palco — ou a história se encarregará de nos lembrar do preço que se paga por seu desprezo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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